domingo, 29 de maio de 2016

ACASO DO DESTINO 2ª PARTE

 Escolheu a roupa para o dia seguinte. Estava calor para ir de calças, mas não gostava de trabalhar de saia. Bem, agora não ia propriamente trabalhar. Mesmo assim deixou em cima da cadeira as calças de ganga azul claro e uma t-shirt laranja. Achou apropriado para as arrumações que a esperavam. Depois logo via que tipo de roupa iria usar. Atirou-se para a cama a sorrir, estava feliz...

Olhava o seu aspecto no espelho, os cabelos castanhos escuros emolduravam o rosto de traços finos, os olhos de um castanho mel brilhavam no rosto cansado pelas amarguras da vida, embora ainda vesti-se o mesmo numero de roupa, a sua figura já não era a mesma de outrora. Mas podia dizer que os 40 tinham sido generosos com ela. A barriga tinha as marcas do dia mais feliz da sua vida! Tirando isso não tinha rugas, pelo menos vincadas, e os cabelos ainda não precisavam de ser pintados para ocultar os brancos.
Apanhou a mala e as chaves e saiu mais cedo. Ia tomar café com a sua amiga e pedir-lhe um favor. Tinha decidido dar um novo rumo à sua vida...

- Olá, por aqui? - A amiga olhava admirada para ela - Deixa-me adivinhar... Tens uma entrevista?
- Não. - Catarina sorria - Tenho um emprego.
- Jura?!- Foi envolvida num abraço apertado - Parabéns amiga, eu disse-te.
Beberam café enquanto contava a Filipa os acontecimentos do dia anterior.
-  Mas assim, como tens tempo para ti e para a Ana?!
- Estava a pensar se podes ajudar-me.
- No que puder amiga.
- Queria arrendar uma casa na cidade. Vou manter a minha, para uma eventual reviravolta, mas queria estar mais perto do trabalho.
- Podes contar comigo, vou começar a procurar e depois digo-te. E se precisares que fique com a princesa...
- Obrigada.

Acabou o café, e apressou-se a ir trabalhar. Lembrou-se que desde que ficou viúva, dependia sempre da ajuda de alguém.  Até à data, uma vizinha ficava com Ana depois desta sair da escola. Mas com este trabalho, era preciso ajustar algumas coisas. E uma delas, era mudar  Ana de escola.

O portão da herdade estava novamente aberto, uns homens estavam a trabalhar nas vinhas, mais propriamente a arrancá-las. Estacionou nas traseiras da casa, e viu  a sua nova patroa que vinha do lado oposto da casa.

- Bom dia. Se soubesse que vinha cedo tinha esperado por si,  assim corríamos as duas.
- Bom dia minha senhora. Desculpe mas correr não é o meu desporto favorito. - Desta vez tinha vestido uns calções pretos e um top rosa. - A não ser que seja parte das minhas funções.
- Minha senhora?! Deixe-se disso, apenas Rosa. - O riso estridente ecoou na sua cabeça - Vamos entrando, acho que Fernando está à sua espera.

 Entraram pela cozinha, Catarina constatou que era mais uma divisão com imensas caixas espalhadas.
Caixas era coisa que não faltava por ali.
Rosa parou abruptamente o que fez com que quase esbarra-se nela.

- Queria perguntar-lhe uma coisa. - Olhava para ela com ar muito serio - Eu vou-me embora daqui a umas horas, mas...- fez uma pausa dramática - Se precisar de mim eu fico. Basta dizer.
- A senhora é que sabe. - Realmente era uma mulher estranha! Mas quem era ela para dizer se a patroa podia ir ou não?!
- Já chegou. - a voz de Fernando veio interrompe-las  - Óptimo, venha. Vou mostrar-lhe a casa.
- Eu vou dar um duche. - E desapareceu escadas acima.
- Já percebeu que aqui é a cozinha.
Por mais de meia hora esteve a ser guiada no que seria o seu futuro local de trabalho. Mas estava intrigada. Já tinham percorrido, praticamente todas as divisões e não viu nenhuma criança!

- Este é o meu quarto - disse abrindo a porta do mesmo. - E o quarto da Rita é aqui ao lado.
- Desculpe... Mas a Rita? Onde está? Pensei que...
- Chega com os meus pais no fim de semana. Agradecia que até lá tivesse o quarto dela pronto. Não costumo vigiar o trabalho dos meus funcionários, não penso começar consigo, confio nas pessoas que estão ao meu serviço. E no seu caso a confiança é a duplicar - Ele olhou-a com os olhos semicerrados - Espero que mereça a confiança que deposito em si.
- Vou fazer por isso. - Catarina começou a abrir as caixas - O melhor é começar já, se quero ter o quarto pronto.
- Se precisar de alguma coisa este é o meu número.

 Estendeu-lhe um papel e desceu. Viu-se sozinha rodeada de caixas que tinham a etiqueta: QUARTO DA RITA

Abriu as janelas do quarto e juntou as caixas todas a um lado. Olhou a disposição dos moveis, quem quer que os tivesse colocado, tinha levado em consideração a claridade da janela, estavam colocados de forma a deixar espaço para a criança brincar, embora o quarto não fosse pequeno. As cortinas eram giras, de tons suaves, e com um padrão adequado ao quarto de uma menina. Borboletas bordadas no mesmo tom do tecido animavam as cortinas. Numa das paredes um painel pintado mostrava a imagem de um campo florido com imensa borboletas a esvoaçar. Por aquilo deduziu que Rita gostava imenso de borboletas.  Começou a retirar as coisas, mas onde estavam os brinquedos?!  Roupas de inverno e verão, roupas de cama e livros... Era tudo o que havia nas caixas.
Estava tão embrenhada na arrumação que se assustou quando Fernando falou.

- Não tem fome?! Comprei-lhe uma pizza, e um sumo.
Catarina olhou o relógio, era quase 15 horas! Nem tinha percebido o tempo a passar.
- Obrigada, não era preciso.
- Não costuma comer?! Não me diga que é daquelas, que não come para não engordar! Olhe que não precisa!

Sentiu a sua face ficar vermelha, por algum motivo incomodou-se com o comentário. Parecera-lhe despropositado. Dava um ar de intimidade que não tinha!
 A mulher ia estar fora, só esperava que ele não fosse daqueles que fazem olhinhos ás empregadas. Abanou a cabeça afastando os pensamentos, não, ele não tinha especto disso. Simplesmente, tinha passado muito tempo desde que ouviu um elogio, se pudesse considerar aquilo um elogio!

- Obrigada.- Disse aceitando o que lhe trouxe. - Estava tão empenhada que nem dei pelo tempo passar.
- Acontece - Ele olhou para ela fixamente antes de olhar o quarto - Está a ficar bem.
- Desculpe, mas a  Rita não tem brinquedos?! Eu não vi nenhuns.
- Ainda não, se achar necessário compre. Por falar nisso. - Tirou do bolso um envelope comprido e entregou-lho - Já pensou em alguém para trabalhar consigo?
- Não. Vou amanhã ao centro de emprego. Depois aviso-o para entrevistar...
- Isso é função sua. Pensei que tinha deixado claro que não quero preocupar-me com isso.
- Mas pensei que...
- Pensou mal, ou eu não me expliquei!

A conversa ficou por ali, ele saiu e ela sentou-se no chão junto à janela. Enquanto comeu a pizza abriu o envelope, era um cartão de crédito. Bem, tinha de se acostumar com as suas novas funções! Assim que saísse ia comprar um dossier para guardar as facturas e uma agenda para anotar as despesas. Tinha de fazer uma lista do que era preciso comprar. Esperava estar à altura do emprego.

Nos três dias seguintes, acabou de organizar o quarto da Rita e arrumou o resto das coisas, que pertenciam ao quarto do Sr. engenheiro. Tinha decidido que era assim que o ia tratar. E a cozinha estava quase. Mas ainda faltava a sala de estar, a biblioteca, o quarto dos brinquedos, a salinha, a sala de jantar, e a sorte era não ter muitas coisas para os restantes quartos. O escritório era domínio dele. No centro de emprego disseram que mandavam uma rapariga hoje da parte da tarde.
Estava em cima do escadote a arrumar os tachos quando tocaram à campainha. A rapariga que estava à sua frente era magrinha e muito nova. Devia de ter, no mínimo, menos dez anos que ela!

- Bom dia.
- Bom dia, desculpe incomodar. Chamo-me Anita. Disseram-me que precisava de uma pessoa para fazer limpezas.
- Sim. No centro disseram que vinha no fim da tarde. Mas entre. - A rapariga estava visivelmente nervosa, teve pena dela - Não precisa de estar assim.
- Eu não vim da parte do centro de emprego. Eu ouvi a conversa que teve com a D. Graça no centro. Peço desculpa, mas preciso mesmo... - começou a chorar desconsoladamente - Desculpe...
- Acalme-se. Vai ver que tudo se resolve.
- Comprámos casa o ano passado e pensávamos casar mas agora ele ficou desempregado e...
- Olhe, fazemos o seguinte - Sentia que devia de a ajudar, ela sabia o que era estar desesperada - Vai ficar à experiência. Se encaixar-mos uma na outra pode contar com o emprego.
- Oh. Obrigada senhora. Muito obrigada. Não a vou desiludir.
- Mas imponho uma condição. - Ela sorriu ao ver a cara de assustada da pobre rapariga - Que não me trate por senhora. Simplesmente Catarina, ou terei de a tratar por senhora Anita.


Quando Anita saiu telefonou para o centro de emprego, a avisar que já tinha uma pessoa.  Só precisava de uma cozinheira. No dia seguinte chegou um pouco mais cedo, para falar com o Sr. engenheiro sobre Anita. Geralmente quando ela chegava ele já tinha saído.

- Bom dia, precisava de falar consigo.
- Bom dia. Diga...
- Já encontrei uma pessoa e...
- Ainda bem. Vou pedir ao meu advogado para redigir o contrato.

E saiu. Mas quanto ia pagar à rapariga?! Ele tinha avisado que não queria chatear-se com essas coisas. Até aí ela compreendia, mas daí a deixar o valor do ordenado da empregada nas suas mãos ia uma grande distância! Mas ele é que era o patrão. Lá teria de se desenrascar.

A meio da tarde começou a arrumar a sala de jantar, numa das caixas estava o livro que faltava na colecção que o sr engenheiro tinha no quarto. Subiu para o deixar no lugar, sabia de antemão que, se uma coisa não vai logo para o lugar, corre-se o risco de a perder definitivamente.
 Abriu a porta, ao mesmo tempo a porta da casa de banho abriu-.se, à sua frente vislumbra-se um homem, a limpar a cabeça numa toalha pequena, e enrolado noutra! Algumas gotas de água escorriam pelo peito musculado dele, ela seguia-as com o olhar, até serem absorvidas pela toalha. Ficou vermelha ao tomar consciência do que estava fazer.

- Desculpe. Pensei que... - Saiu do quarto, rezando para que ele não se tivesse apercebido do seu embaraço. Levou a mão à cara, sentia-se quente. Devia de estar vermelha que nem um tomate.

Refugiou-se no que estava a fazer anteriormente. A sua cara continuava quentíssima, esperava que ele tivesse a decência de sair sem lhe dirigir a palavra. Assim teria tempo de assimilar a vergonha.

- Queria algo? - Ao ouvir a voz dele sentiu a cara ficar mais quente ainda.
- Encontrei o livro que faltava no seu quarto. - Fingiu arrumar algo, evitando enfrentá-lo. - Está aí na mesa à entrada.
- Quem a visse agora, diria que nunca viu um homem à sua frente. Não é casada?
- Viúva. - Pareceu-lhe importante salientar esse facto - Mas não tenho por hábito ver o marido das outras, muito menos meio despidos.
- Não disse que tinha.- Ele sorria,parecia achar piada à situação - A rapariga quando começa?
- Na segunda feira. - Graças a Deus que mudou de assunto -Entra ás 9 e sai às 13 nestes primeiros dias, depois fica de tarde também. Parece-lhe bem?
- Se você acha bem.
- Desculpe, esqueço-me que não quer ser incomodado com estas coisas.
- Tenho a vaga sensação que... - Foi interrompido pelo telemóvel - Sim... Não, estou de saída...

Viu-o afastar-se, ainda bem que a deixava sozinha. Quando fechava os olhos via a água a escorrer, pelo peito dele. Abanou a cabeça afastando esses pensamentos. Ouviu o carro abandonar a herdade, respirou aliviada, não precisava que ele ficasse por ali, alimentando aquela visão.

Finalmente era sábado, estava mais cansada nestes poucos dias, que num mês no anterior trabalho! Hoje ia jantar com Filipa. E para variar estava atrasada. Morar a kms de distancia da "civilização" tinha estes inconvenientes.
- Ainda não estás pronta? Vamos chegar atrasadas. - Ana estava impaciente para chegar a casa de Filipa.
- O que te preocupa não é o atraso, é passares pouco tempo com o Miguel.
- Oh mãe...
- Vou...estou a ir...

Filipa acabava o seu copo de vinho, e falava, mas ela estava num outro tempo. Numa época em que, ainda acreditava que seria feliz.
Conheceu Henrique quando tinha 14 anos, seu primeiro e único namorado. Pensou que quando fossem para a faculdade terminassem o namoro, mas quando deu por si estava à espera da sua princesa. A sua mãe já tinha falecido, e o seu pai, que não concordou com o namoro, muito menos aceitou o casamento. Mas casou, sem o apoio da pouca família que tinha. A família de Henrique, embora fossem de um estrato social diferente do dela, aceitou-a bem, pelo menos assim lhe tinha parecido a principio, se ela soubesse o que a esperava... Henrique foi um bom pai e um marido atento. No geral foram felizes, dentro do que a vida lhes proporcionou. Não entrou em desespero após o falecimento dele, apenas sentiu um vazio. Na maioria dos dias sentia-se sozinha, talvez por se ter afastado da família do marido, levou a vida tão bem como pode. Jurou, à muito tempo atrás não recorrer aos sogros,e tinha mantido a sua palavra até então. Mesmo sentindo uma solidão enorme, nunca procurou outro homem. Não sentia necessidade disso, duvidava seriamente que homem algum a fizesse pensar nessas coisas. Desde que ficou sozinha com a filha, que ela não saía com outro homem, e muito menos ter certas intimidades com ele! Não era parva, alguns tentaram, na sua maioria casados, mas fazia-se de desentendida. A sua amiga ria-se dos complexos dela. Costumavam ler nas revistas, mulheres a pedirem conselho, pois gostam do marido da sua amiga, irmã e por aí fora e vise versa. Na sua maioria riam-se dos casos expostos, mas ela perguntava-se, como se pode ter pensamentos desses, por um homem que sabiam ser casado. Nunca pensou olhar para outro homem, muito menos um casado!

- Caty?! Terra chama Caty!!!- Filipa tirou-a dos seus pensamentos- Achas que podes ir?
- Desculpa!Estava tão longe.
- Já percebi. Onde estavas desta vez?
- Onde não posso voltar mais. - Deu um meio sorriso - Estavas a dizer?
- Se podes ir, vamos fazer uma festa no centro recreativo. É no sábado à noite.
- Não sei, sabes que só tenho o domingo livre.
- A Ana pode ir connosco?
- Claro que pode ir. Se eu não estiver a trabalhar, também vou.
- E como é o teu chefe?!
- Normal.
- Normal! Isso quer dizer o quê?! - Filipa fez uma careta - Já estou a ver, gordo, baixo, careca e de bigode farfalhudo tapando uns lábios fininhos que dá dó!
Catarina riu-se, nada mais longe da verdade. Fernando era mais alto que ela, de cabelo escuro e olhos castanhos esverdeados. A barba por fazer à poucos dias. Não podia dizer que fosse atlético mas era bem constituído. Os músculos bem delineados, nada demais, o suficiente para despertar a curiosidade feminina.

Na manhã seguinte Catarina acordou com o som do telemóvel.
- Bom dia. - Olhou o relógio ao ouvir a voz masculina do outro lado, estava atrasada?!
- Bom dia.
- Tem planos para hoje?
- Precisa de mim? - Ela sabia que se assim fosse tinha de ir, estava no contrato
- Não, apenas lhe perguntei se tinha planos.
- Prometi à minha filha...
- Então esqueça. Até amanhã.
Catarina ficou a olhar o telemóvel, ele tinha desligado na cara dela?! Rita chegava hoje com os avós, seria por isso que lhe tinha telefonado? E se precisassem de alguma coisa? Não tinham ninguém para cuidar da menina, nem quem fizesse o jantar.
Afastou aqueles pensamentos, estava a cometer o mesmo erro. Tratar os filhos dos outros como se fossem dela. Tinha a sua para se preocupar, os outros eram responsabilidade sua apenas no horário laboral. Meteu-se no duche, estava decidida a aproveitar o domingo na companhia da sua filha.

Na segunda feira Catarina fez a viagem até ao trabalho, numa pilha de nervos. Era  seu primeiro dia com Rita, e se não gostasse dela? E se fosse uma criança birrenta? E se acha-se que ela, estava ali para satisfazer os caprichos dela? Não sabia nada da menina.
Entrou em casa, com uma certa curiosidade. Ouviu um barulho que vinha da cozinha, possivelmente a mãe dele. Ela deveria ter chegado mais cedo, para preparar o pequeno almoço?  Os pais dele estavam em casa, ela não sabia como agir. Ele não lhe tinha comentado nada a respeito, e era a sua estreia como governanta. Se bem que na anterior casa, ela é que decidia que fazer, e quando fazer estava preocupada. E começava a ter dúvidas, muitas dúvidas, quanto ao seu desempenho.
- Droga de máquina... - A voz ouviu-se ao mesmo tempo que uma mão acertou em cheio na maquina do café.
- Precisa de ajuda? - Catarina tentou conter um sorriso - Não é assim tão difícil!
- Está a achar isto divertido? - Os olhos dele deitavam faiscas - Estou à meia hora tentando fazer um café,e esta coisa supostamente inteligente, apenas apita! Se acha que é mais capacitada, faça favor.

Ele desviou-se da bancada, ela começou a rever se estava tudo bem. Ela sorriu ao ver que a cápsula do café estava ao contrário, e como tal não fechava bem.
- Seria bem mais fácil, se coloca-se a pastilha correctamente. - Encaixou-a, carregou no botão e um café cremoso começou a cair na chávena - O material tem sempre razão.
- Quase sempre, obrigada.
- A Rita e os seus pais tomam o pequeno almoço em casa?
-  Ela ainda dorme e os meus pais voltaram para casa.
- Pensei que ficassem.
- Divertiu-se com a sua filha?
Ficou sem saber se perguntava por educação, se queria mesmo saber. Mesmo assim arriscou a responder.
- Sim, tento aproveitar ao máximo o dia que passo com ela.
- Que idade tem? - Depois de confirmar se a pastilha estava bem encaixada, conseguiu fazer outro café e tirou um para ela - Sente-se e faça-me companhia.
- Obrigada. - Sentou-se no lado oposto da mesa ficando de frente para ele -Tem 13 anos.
- Pensei que fosse mais nova. - Calou-se a olhar o café que fumegava - A minha tem cinco, quase seis.
- Ainda é muito pequena.
- Sim, mas adulta demais para a idade...

O telemóvel tocou e ele saiu, ela ficou com a sensação que ele queria dizer algo mais. Sorriu, ao lembrar-se das longas conversas que tinha com o seu anterior patrão. Costumava falar mais com ela que com a esposa. Dizia-lhe que,como a esposa estava sempre por fora, e ele não podia sair por motivos de saúde, sentia falta de falar com alguém.
Com estes pensamentos lavou as chávenas e subiu. Abriu a porta do quarto de Rita, ainda dormia. Voltou para a cozinha e fez uma lista de coisas que precisava comprar. Se tivesse tempo ainda ia antes de Anita chegar.
Voltou a subir, como Rita ainda dormia, decidiu fazer a cama dele.

- Pai! Pai!
A voz assustada ouviu-se pela casa fora. Uma figura pequena estava sentada na cama chorando.
- Olá. Sou a Catarina. - Rita olhava desconfiada para ela - Vou cuidar de ti. O teu pai não te disse?
Rita apenas abanou a cabeça confirmando.
- O teu pai falou muito de ti, mas não disse que eras muito bonita. Queres que te ajude a vestir? - Rita continuava calada - Eu preciso de ajuda, tenho de ir às compras. Achas que podes ajudar-me?
- Quero o pai. - Ameaçava retomar o choro - Pai!
- O teu pai teve de sair. Mas se quiseres podemos telefonar. - Ela olhou em redor fingindo procurar o telefone, nas prateleiras vazias - Temos de lhe perguntar se podemos ir comprar os teus brinquedos hoje.
Ao ouvir falar nos brinquedos Rita parou de chorar.
- Para mim?
- Claro. Mas, só depois de tomares o pequeno almoço. Vou ver do telefone lá em baixo.
Saiu fechando a porta, e deixou-se ficar encostada, ouviu mexer a cama, gavetas abrindo e fechando e pouco tempo depois a porta da casa de banho fechou-se. Ela sorriu, afinal ainda tinha jeito. Quando voltou a entrar uma Rita lavada e perfumada estava sentada na cama tentando pentear o longo cabelo.
- Queres ajuda?
- Se quiseres.
- Costumava pentear a minha filha, quando tinha a tua idade.

Algum tempo depois estavam a duas sentadas na esplanada. Rita precisava de tomar o pequeno almoço, pediu uma fatia de bolo de chocolate com um copo de leite, e um café para ela. Ligou para Anita e pediu-lhe que fosse ter com ela ali
O carro estava cheio de mercearia e de brinquedos.
Quando chegaram a casa Rita parecia outra, falava sem parar. Arrumaram os brinquedos e deixou-a a brincar enquanto falava com Anita sobre as tarefas.
- E diz que vai contratar uma cozinheira?!
- Pois, embora não concorde. Nunca está em casa e a menina não come nada de mais. Mas enfim.
- Gente rica... - Anita calou-se ao ver a menina na entrada da cozinha.
- Estou com fome.
Catarina olhou o relógio, era quase meio dia.
- Tens razão, é quase hora de almoço. Queres ajudar-me?
- Posso?! - Os olhos dela brilhavam- A serio?!
- Claro. - Deixou Rita picar as cenouras na picadora com a ajuda de Anita. - Nunca falámos nisso, mas depois, quando ficares o dia todo, ficas para almoçar. - Anita baixou a vista,percebeu que não estava à vontade. - Preferes almoçar em casa?
-Se não se importar. Não é por si nem pela menina...
Catarina riu-se, ela também se sentiu assim quando começou.

No dia seguinte delinearam as tarefas diárias. Depois de tudo organizado, o dia dava para tudo o que fazia falta e ainda podiam conversar. A menina pouco desarrumava, e o quarto do sr. engenheiro, na maioria das vezes, quando Anita chegava já estava arrumado. Restava arrumar algumas caixas, que ainda estavam espalhadas pela casa. Antes de ir para casa, Anita levou as caixas vazias para a garagem.
Tirou os bifes de frango e cortou-os em tiras. Perante a insistência de Rita, colocou-lhe um avental improvisado com uma toalha e deixou-a fazer um bolo de chocolate.
Meia hora depois estavam as duas, de mãos enfiadas na pia da loiça a lavar os recipientes. Uma mistura de cheiro a strogonoff e bolo de chocolate enchia o ar.
Rita riu-se quando uma bola de sabão foi absorvida pelo extractor de fumo.

- Quanta animação.
- Pai! - A voz alegre da menina sobrepôs-se ao baixo som do extractor, ao mesmo tempo que corria para os braços do pai- Fiz bolo de chocolate.
- Sozinha?
- Não, tonto. A Catarina ajudou. Não foi? - As atenções estavam agora centradas nela.
- Eu apenas fiz o almoço.
- Então eu coloco a mesa. - Deixou uns papeis em cima da bancada e apanhou os pratos.
- Pai comprámos brinquedos, vou buscar a Lita.
- Se tinha duvidas quanto à sua capacidade, estão todas por terra. Nunca imaginei que fosse tão boa com crianças.
- Foi pura sorte.
- Não acredito. Não depois de tudo o que...
- Olha, esta é a Lita. Gostas dela?
- É muito gira. Ela fica para almoçar?
- Só dizes tontices...

Catarina almoçou em silêncio. O homem que dava toda a atenção à filha, parecia outro, muito diferente do homem distante, que era, quando estava na companhia da mulher.
 Ele ofereceu-se para ajudar a arrumar a cozinha, no processo de passar os pratos por água salpicou a camisa e Rita riu-se. Mas ela estagnou, sem querer, na sua mente apareceu a imagem dele saindo do banho.
No dia seguinte, levou Rita quando foi tomar café com a sua amiga. Passearam pelas ruas da cidade e a menina apaixonou-se por uma boneca de pano. Ela fez questão de lha oferecer. Rita parecia mais animada e mais à vontade com ela. Até lhe chamava Caty como Filipa.
Rita brincava na sala com a boneca nova quando o pai chegou. Depois da alegria habitual ele quis falar com ela.
- A boneca nova é muito bonita, diz que lha ofereceu.
- Sim. - Não gostou do tom de voz dele nem da forma como a olhava.
- Espero que a tenha comprado com o cartão que lhe dei.
- Claro que não! - Sentiu-se ofendida - Se lha ofereci, paguei-a com o meu dinheiro.
- Não é obrigada a comprar-lhe...
- Desculpe! Obrigada?! - não se conteve. - Não fui obrigada a nada. Comprei porque quis, peço desculpa se o ofendi. Não era minha intenção.
- Não me ofendeu. Simplesmente acho que tenho dinheiro...
- Sei que tem. E eu simplesmente achei, que tinha liberdade para oferecer uma simples boneca! Se acha que abusei da liberdade que me foi dada, peço desculpa. Não sabia que devia de deixar o coração em casa quando viesse trabalhar.

Saiu,deixando-o sozinho no escritório. Quando se acalmou, percebeu que não devia de ter falado com ele assim, afinal era seu patrão. Era melhor controlar os seus ataques antes que ele se aborrece-se com ela, e a despedi-se! Aquele dinheiro fazia imensa falta! E duvidava, que encontra-se um emprego tão bem remunerado. Mas não pediria desculpa, não tina feito nada de mal. Apenas ofereceu uma boneca à menina, mas ele agia como se tenta-se comprar o carinho dela! Não sabia porquê, mas sentiu-se ofendida. Gostava verdadeiramente da menina. E foi isso que comentou com Filipa nessa mesma noite, quando foi apanhar Ana.
- Acho que ele não fez por mal.
- Não fez?! Se visses como me olhou, e a forma de falar?! Se pudesse atirava-lhe com uma coisa à cabeça. Que raiva me deu na altura. Já marquei hora com um advogado, quero saber o que tenho de fazer se quiser deixar o emprego.
- Não estarás a dar demasiada importância ao assunto?
- Claro que não! Detesto que desconfiem do meu trabalho. Diz que não quer ser incomodado e depois, repreende-me como se fosse uma adolescente! Não passa tempo nenhum com a filha, mas se visses como se ilumina o olhar dela quando o vê!
- Acho que já estás a deixar-te envolver demais. -Filipa sabia que a amiga tinha um coração enorme, que abria sem reservas e depois sofria como ninguém quando se separava das crianças.
- Sabes que me entrego de corpo e alma às crianças. Esse é o meu problema. Se visses como ela está sozinha. Acreditas que a mãe, nunca mais a veio ver?
- Desde que te entregues apenas à criança... - Filipa riu-se da cara que ela fez - Diz lá, não sentes saudades de estar com um homem?
- É casado! E não, não sinto.
- Nunca imaginas-te como será sem camisa ou na cama?
- Claro que não. - Ficou vermelha, não precisava imaginar, ela viu-o!

Duas semanas depois, esquecido o pequeno incidente, ela começava a ganhar confiança. Depois de destinar as tarefas a Anita, passava o dia cuidando de Rita e organizando o pouco que ainda estava em caixas. A cozinheira, essa, era uma complicação, as candidatas apareciam, mas todas tinham as suas condições! Duas não queriam cozinhar para poucas pessoas, uma não cozinhava para crianças, outra não trabalhava aos sábados, e ainda apareceu uma que pensava que era um restaurante. Resultado, era ela que se encarregava da cozinha. Fazia-o de bom grado, sempre gostou de cozinhar. Desistiu da cozinheira no centro de emprego. Não se justificava, e não estava para entrevistar pessoas, que inventavam desculpas para não trabalhar. Gostava de Anita, tinham tudo bem organizado, e o mais importante, podia confiar nela. E tirando a situação com as refeições entendiam-se lindamente.

Estava a fazer o jantar quando ele entrou na cozinha abruptamente.
- Importa-se de vir ao escritório? - Inclinou-se para beijar a filha - Ficas a pintar aqui,está bem?
- Sim.

 Segui-o em silêncio. Aquela situação não lhe trazia boas recordações.

- Pode explicar-me porque desistiu da cozinheira? - Mal teve tempo de fechar a porta do escritório.
- As que vieram inventaram as desculpas mais mirabolantes. E a mim não me importa cozinhar...
- Não lhe pago para cozinhar! - Quase que gritava com ela - Pago-lhe para cuidar da minha filha.
- Mas porque será, que consigo as questões giram todas em redor do dinheiro?
- Caso não tenha reparado o mundo é movido pelo dinheiro!
- Existem coisas que o dinheiro não compra! E, caso não tenha reparado, a sua filha está muito bem. - Não gostava que duvidassem do seu trabalho, o facto de ser seu patrão, não lhe dava o direito de falar com ela assim -  Não descuido nenhum aspecto, e muito menos, no que diz respeito à menina. Com a ajuda da Anita, a casa está sempre impecável.
- Sei perfeitamente disso. Pedi-lhe para arranjar uma cozinheira, e você desiste, sem me consultar?! .
- Pensei que me tinha contratado, para não ser incomodar com estas coisas! - Ele deitou-lhe um olhar reprovador, mas ela continuou  - Apenas fiz o que achei melhor, e não vejo motivo para contratar outra pessoa. Mas você é que sabe. Se quer uma cozinheira, arranja-se uma. Não sei é onde! - Olhou-o desafiante- Como não gosta dos meus cozinhados, prefere ir a um restaurante ou quer que encomende a comida?
- Sabe perfeitamente que é uma cozinheira excepcional. Não é isso que está em causa. Simplesmente não quero sobrecarrega-la de trabalho.
- Se acha-se que era demais, já tinha arranjado a dita cozinheira.
- Muito bem. Se prefere assim. - Ela já se preparava para sair, dando o assunto por terminado. - Outra coisa. - Abriu a gaveta e tirou de lá as facturas, que ela ia guardando das compras - Isto. O que é? E não me responda facturas, que eu sei muito bem o que são.
- Se sabe, que quer que lhe diga?
- Quando lhe disse, que confio nas pessoas que trabalham para mim, referia-me a, que certas coisas são desnecessárias. Como este armazenamento de facturas. Alguma vez lhe pedi alguma?
- Não, mas eu pensei...
- Então não pense, deite-as fora na primeira oportunidade.
- Com certeza. - Estava a ponto de explodir, se fica-se muito mais ia acabar por dizer algo que não devia. Era melhor dar o assunto por terminado. - É tudo?
- Sim.

Dirigia-se à porta, quando ouviu a gaveta a fechar-se com um safanão, estava de mau humor. Que se teria passado? Duvidava que aquela explosão toda, fosse simplesmente por causa de uma cozinheira. Era a segunda vez que a chamava à atenção por coisas ridículas. Começava a sentir pena dele, via-se sozinho a criar a filha. Voltou-se para lhe perguntar se estava tudo bem, mas terminou nos braços dele. Fixou o olhar no dele. por uns instantes ficaram assim. A sua cabeça dizia para se afastar mas o seu corpo não obedecia. Baixou o olhar para as suas mãos, aprisionadas entre o peito dele e o dela. Sentiu a mão dele no seu pescoço a acaricia-la. Ouviu uma campainha, parecia muito distante. Ignorou-a, gostava daquela sensação...

- Pai! Caty!
A voz da pequena tirou-a daquele transe.
- O bacalhau...

Ouviu o carro dele deixar a herdade. Sentou-se junto a Rita, que pintava o livro, alheia a tudo.
Não voltou para jantar, depois de sossegar a menina deitou-a e desceu.
 Ainda pensava no que tinha acontecido à pouco. Era melhor fingir que não tinha acontecido nada, deixar de tentar compreender a mistura de sentimentos, que a invadia quando estava com ele. Avaliando as coisas, não se tinha passado nada demais. E deviam de manter as coisas assim, ele era casado e seu patrão.
 Ela tomava chá na cozinha quando ele chegou. Pegou nas suas coisas e preparou-se para sair.
- Rita já está a dormir. Não precisa mais de mim? - Tentava parecer calma
- Não, obrigada. Até amanhã.
- Até amanhã sr. engenheiro.

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