Isi vestiu o casaco e olhou-se no espelho. Optou por um casaco de corte cintado e uma saia justa pelo joelho de cor preta, uma camisa cinza de ceda e uns sapatos de salto completavam o conjunto.
Deixou Leonard com a ama e apanhou um táxi, Matheus aguardava por ela em casa.
- Desculpa, perdi a noção das horas, - Pelo aspecto Matheus ainda não tinha tomado duche - Dá-me dois segundos.
- Posso ajudar em algo? - Olhou a secretária cheia de papeis, que possivelmente trouxe do escritório.
- Obrigada, trato disso depois.
Enquanto Matheus se vestiu deu um jeito na secretária, no ecrã do computador aparecia a página de empregos disponíveis. Aquilo despertou a sua atenção, andava à procura de emprego?!
- Vamos?! - Matheus apanhou um dossier que colocou na pasta e dirigiu-se à porta - A família certamente quererá ler o testamento ainda hoje.
- Hoje?! Não vejo a urgência.
- Os ricos regem-se por outros padrões.
- Os ricos... como se tu fosses pobre.
- Bem, pobre não sou, mas para rico ainda falta muito. E agora com o falecimento de Isabelle
- Por isso estás à procura de emprego?
- Como... - Matheus olhou para ela de sobrolho carregado, mas depois esboçou um sorriso - O computador...
- Não tens mais clientes?
- Sim, mas a tua madrinha era a minha maior e melhor cliente. Duvido que o herdeiro da empresa me queira manter, terá os seus próprios advogados.
- Sinto muito.
- Não te preocupes, estou bem de vida. Simplesmente habituei-me a um nível mais elevado.
- É difícil descer...
Ela sabia como foi difícil deixar a casa da madrinha, onde tinha empregados que faziam tudo e agora tinha de fazer tudo sozinha. O mais difícil foi não ter um familiar a quem recorrer quando tinha dúvidas sobre Leonard. Nessas alturas recorria a uma amiga de Matheus, enfermeira, foi ela que a ajudou a dissipar as inúmeras dúvidas. Ficaria eternamente grata a Matheus pela ajuda que lhe deu nesses meses.
- Isi ?!
- Chegámos?!
Antes de sair do carro Isabelle percorreu com o olhar as pessoas que estavam na rua a conversar, algumas delas conhecia, outras nunca tinha visto. Não esperava encontrar tanta gente! Aceitou o braço que Matheus lhe oferecia e passou sem olhar directamente para elas. Sentia os olhares curiosos cravados nela, apertou o braço de Matheus com mais força e entrou na igreja. Lá dentro estavam apenas os primos que ela conhecia dos jantares. Gerou-se um murmúrio quando ela se aproximou do caixão. Imaginava a reacção deles ao saberem que ela ficaria com o palacete. Provavelmente iriam discordar da vontade da madrinha. Matheus contou-lhe que algumas pessoas chegavam a impugnar os testamentos dos familiares! Se esperavam que ela fosse brigar por algo estavam redondamente enganados, não queria nada da madrinha se isso fosse arranjar discussões com a restante família. Sentia-se culpada por a ter abandonado quando precisou dela. Independentemente do que diriam, devia de ter ficado a seu lado. Talvez a madrinha não tivesse... Foi incapaz de segurar as lágrimas, procurava um lenço na mala quando sentiu uma mão no ombro. Por instantes teve medo de se voltar, mas não podia ignorar aquele gesto, não com tantas pessoas ali. Voltou-se ligeiramente com o olhar turvo pelas lágrimas e viu um dos primos de Isabelle.
- Minha querida, venha sentar-se. - Estendia-lhe um lenço - É uma perda imensa para todos nós. Mas nada mais à a fazer.
- Obrigada. - Isabelle aceitou o lenço - Vou sentir muito a sua falta.
- Vamos todos, vamos todos...
O homem permaneceu a seu lado sem dizer palavra, alguns dos restantes familiares aproximavam-se para a cumprimentar, como se só naquele instante a reconhecessem.
- Desculpe. Lembro-me de o ver lá em casa mas não recordo o seu nome.
- Louis. O meu pai era primo em segundo grau de Isabelle. Espero que este percalço não vá estragar o seu curso.
- O meu curso?!
- Isabelle comentou que tinha iniciado um curso em Espanha. Que estaria ausente por algum tempo.
- Sim, estou quase a terminar. - A madrinha tinha mentido para desculpar a sua ausência?!
- Ainda bem. Ainda é jovem, Isabelle tinha...
Isabelle deixou de ouvir o que ele dizia, a sua atenção ficou retida no homem que se encontrava a falar com Matheus. Philippe! O fato preto acentuava o porte atlético que recordava demasiado bem. O cabelo negro, que ela um dia comparou a uma noite sem luar, estava mais curto. Mesmo sem lhe ver o rosto tinha a certeza que continuava lindo. Os seus olhares cruzaram-se quando procurava uma mulher igualmente bela, por instantes sentiu-se incapaz de desviar o olhar.
- Vieram muitos amigos. - A voz de Louis chegou até ela num sussurro, salvando-a da hipnose em que se encontrava.
- Sim. - As suas pernas começaram a tremer quando viu que Matheus e Philippe vinham na sua direcção. Baixou a cabeça tentando concentrar-se em Louis e na conversa que ele insistia em manter.
- Desculpe Dr. preciso de falar com Isabelle.
Ela levantou a cabeça e respirou fundo quando viu que Matheus estava sozinho.
- Philippe quer falar contigo. - Matheus sussurrava - E hoje ainda.
- Imaginei que sim, que lhe disseste?
- Depois falamos, vi que nos observavas nervosa, queria tranquilizar-te. Consegui convencê-lo a aguardar.
- Até quando vai esperar ?
- Até que te sintas capaz.
- Então podes dizer-lhe que volte para a sua querida França, nunca me sentirei capaz de falar com ele.
- Sabes que não posso fazer isso... - Matheus calou-se, ao ver o padre entrar na igreja - Vamos.
Tudo parecia irreal para Isabelle, as palavras do padre elogiando a madrinha, o choro contido dos familiares, o sussurro dos demais, o caminho até ao cemitério... Até o cair da terra sobre o caixão lhe parecia irreal, como que saído de um pesadelo. Aceitava as condolências mecanicamente, queria pensar na madrinha mas não conseguia deixar de pensar em Philippe. Era melhor preparar-se para o que a esperava. Tinha plena consciência que à medida que o dia avançava, diminuía o tempo que faltava para falar com ele. Pois ele não partiria sem falar com ela. Depois de comerem algo no palacete, os familiares e alguns amigos começaram a dirigir-se para os carros e partiam, outros ficavam ali, na sala, olhando para ela. Sem querer começou a imaginá-los como abutres, aguardando que a presa caísse inanimada. Matheus resgatou-a desses pensamentos.
- Podemos ler o testamento?
- Não sei... Se achas bem.
- Isi! Esquece Philippe por uns instantes.- Matheus mostrava-se impaciente - Sou teu amigo, mas também represento Isabelle. Tenho de respeitar a sua última vontade, ela quereria resolver tudo o mais rápido possível.
- Então é isso que faremos.
As conversas silenciaram-se quando Matheus tossiu para chamar a atenção, olhou para todos, pediu que se sentassem e depois ligou o computador.
- Como sabem, Isabelle era uma mulher peculiar... - Matheus elogiou a falecida num discurso rápido, ela sabia que as palavras eram poucas para descrever a grande mulher que tinha sido a madrinha, quando Matheus a mencionou começou a chorar, mais uma vez Louis estendeu-se a mão e apertou a sua. Sorriu agradecendo. - Passo a ler a última vontade de Isabelle - Matheus continuava a leitura - A Michelle deixo a minha colecção de quadros, sei que lhe dará o devido valor. A Louis, assim como aos seus irmãos deixo a empresa, sabendo da paixão que têm ao mar, deixo-lhes também o iate. É uma pena ficar esquecido na marina. À minha querida afilhada deixo o palacete ou o solar como a mãe gostava de lhe chamar, espero ter cuidado de ti devidamente e assim ter cumprido a promessa que lhe fiz. Deixo também...
Isabelle não conseguiu ouvir nada mais, com as lágrimas caindo pelo rosto abandonou a sala. A casa era enorme e agora parecia-lhe muito mais. Uma casa vazia era tudo o que restava, abriu a enorme porta de vidro que dava para os jardins. Sentou-se no banco que a madrinha costumava ocupar quando lia e deixou sair toda a sua dor. Quando se sentiu mais calma voltou para junto do resto da família. Matheus continuava a leitura
- ... se isso se confirmar, os bens reverterão para uma instituição.
Isabelle olhou para Matheus, este viu-se repentinamente bombardeado com perguntas. Sentou-se numa cadeira ao fundo da sala. A pouco e pouco a família ia saindo depois de se despedirem dela. Pensou que ficariam ressentidos com ela por ficar com o palacete, porque não pertencia à família, mas se ficaram não o demonstravam. Louis sentou-se junto a ela.
- Bem, parece que vais ter de seguir o que ela começou. Isto, se pretenderes ficar com a casa.
Aquela era uma boa oportunidade para saber o que realmente pensavam a respeito.
- Posso perguntar-lhe uma coisa?
- Sim.
- Eu sei que não sou da família, por isso não...
- Minha querida, todos sabemos o muito que Isabelle te queria. Eras a filha que Deus não lhe permitiu ter. Não era segredo que ela iria deixar-te a casa. Mas aqui entre nós,acho que nenhum imaginou que te iria obrigar a receber os amigos dela como sempre fez.
- Receber?!
- Parece que vais ter de nos receber por mais alguns anos. - Louis sorriu ligeiramente - Bem, vou antes que Lisa vá sem mim. Gostei de te ver.
Isabelle não ficou admirada com a condição imposta, conhecia bem a madrinha, aquilo era mesmo o estilo dela, podia imagina-la a dizer-lhe: - Se queres a casa, tens de a merecer... É tua, desde que continues a receber os amigos como até aqui.
Sorriu ligeiramente, toda a insistência em que aprende-se qual era o vinho indicado para os variados pratos, que flores ficavam bem num centro de mesa, o que vestir ... Estava a prepara-la para este dia?! Como não tinha filhos, via nela a continuação do que ela achava ser a sua obrigação para com a família e amigos?
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