Isabelle permaneceu pensativa enquanto Matheus arrumou os papeis. Ficar com a casa implicava receber aquelas pessoas todas! Conhecia-as bem e simpatizava com a maioria delas, não via problema em fazer isso.
- Toma. - Matheus estendeu-lhe um envelope - Isabelle fez-me prometer que o entregava.
- Sabes do que se trata?
- Sinceramente não sei. Quando mo entregou disse que era pessoal. E que devia de o entregar quando estivesses sozinha.
- Obrigada.
- Ficas bem ? - Matheus olhou para os olhos húmidos dela - Vou beber um café e volto... meia hora?!
- Sim. - Isabelle segurou-lhe a mão - Obrigada.
- Para que servem os amigos?!
Sorriu-lhe antes de ele se afastar. Respirou fundo e abriu o envelope. Estava escrito pela mão da madrinha, reconhecia a letra floreada dela. Uma lágrima caiu sobre a folha.
" Minha querida, sinto que a vida me foge, a cada dia que passa torna-se mais difícil respirar, não me resta muito mais. Não chores, não quero que sintas pena de mim, tive uma boa vida. E tive o privilégio de te ter na minha vida, embora não saísses de dentro de mim, sempre te vi como uma filha, a filha que sempre desejei. Lembras-me tanto a tua mãe... herdas-te o sorriso dela e o coração bondoso. A determinação, essa é da tua avó. Ainda me lembro do dia e que as conheci. O meu pai deu uma festa e a tua avó veio servir. A tua avó toda vestida de preto, o que a fazia parecer mais alta, de cabelo apanhado no alto da cabeça, dando ordens ás demais mulheres, contrastava com a tua mãe, baixa, envergonhada e sentada num canto da salinha com um livro na mão. Não havia jovens, apenas eu e ela. Ela tinha o cabelo como o teu, ondulado e comprido... Fiquei a olhá-la, achei o cabelo dela tão lindo, os olhos tinham um brilho especial, parecia tão feliz. Tentei ignorá-la quando começou a fazer perguntas, mas pouco tempo depois estávamos a falar de como os rapazes são idiotas... Voltámos a encontrar-nos algumas vezes, mas com o início das aulas pensei que nunca mais a veria. Ela era a primeira pessoa a tratar-me como igual, com ela podia ser eu mesma, sem estatutos sociais. Não imaginas como fiquei feliz por a encontrar na faculdade! Pois... andámos na mesma escola, um castigo imposto pelo meu pai... mas isso não interessa. A nossa amizade cresceu com os anos, entre muitas conversas, combinámos que seria a madrinha dos filhos dela e vice-versa. Dois anos depois disse-me que estava grávida, que o teu pai vos tinha abandonado. Mas que eu não tinha porque cumprir o que prometi, não passou de conversa de miúdas! Não queria acreditar no coração dela, estava só e mesmo assim não falava com rancor, estava cheia de amor! Naquele instante prometi-lhe que a ajudava no que fosse preciso e que seria um orgulho ser a tua madrinha. Infelizmente a tua mãe faleceu quando estava no estrangeiro, insisti em cumprir a minha palavra, embora com os estudos fosse uma madrinha ausente. Nunca casei nem tive filhos, Deus não o permitiu, quando te deixaram aos meus cuidados fiz de ti a minha filha. Por uns anos tive uma família, alguém a quem amar. Não imaginas como me senti impotente, inútil, quando me disseste que precisavas de um tempo, sei que algo se passou, tenho pena que não confiasses me mim o suficiente para me dizer, teria todo o gosto em ajudar-te. Mas tinha de respeitar a tua decisão, tinhas feito 20 anos à pouco e sempre foste responsável. Que mal faria dar-te uns dias?! No dia seguinte arrependi-me e contratei um detective. Descobriu que estavas com Matheus, fiquei mais tranquila. Matheus cuidaria bem de ti. Mas o tempo passa rápido, os dias tornam-se semanas, meses e à quase dois anos que não te vejo. Todos os dias pergunto a Matheus se está tudo bem, certifiquei-me que ele soubesse que se precisasse de algo, fosse o que fosse, me dissesse. Ele sabe o que está subentendido, afinal não é idiota como a maioria dos homens. Espero que tenhas resolvido a questão que te levou a abandonar esta casa, assim como espero que a aceites, sei que te peço demais, mas é uma forma de continuar viva, uma forma de me tornar inesquecível. Nestes dias tenho sentimentos confusos, queria ter-te aqui para me despedir mas ao mesmo tempo agradeço por não me veres assim... acabada, sem alegria, sem forças... Sinto tanto a tua falta...
Promete-me uma coisa, que não vais desistir do que realmente queres, promete-me isso, que vais lutar pelo que te faz feliz. Pois só isso importa, a nossa felicidade e a dos que nos rodeiam. Quando chega a nossa hora, é bom olhar para o que vivemos e saber que fomos felizes. O tempo é escasso, não chores minha querida, chegou a minha hora, vou de coração cheio.
Tua madrinha
Isabelle Monty
Isabelle limpou as lágrimas que escorriam pelo rosto, dobrando a carta prometeu que iria cumprir a última vontade da madrinha. Fechou a porta da sala e foi ter com Matheus, ainda faltava um pouco mas certamente não demoraria a chegar. Vince, o mordomo da madrinha, acompanhou-a até à porta. Agradeceu-lhe e prometeu voltar no dia seguinte para falar com eles. Olhou para o sol que brilhava com toda a sua força, deixou-se ficar uns instantes, como se aqueles raios de sol pudessem aquecer a sua alma, colocou os óculos de sol e começou a descer as escadas. O som da porta de um carro a fechar-se obrigou-a a olhar na direcção do som, Philippe esperava encostado ao carro desportivo. Formou-se um nó na garganta, esquecera-se completamente que ele queria falar com ela. Não podia dar-lhe a entender o quão nervosa estava, ajeitou os óculos na cabeça e caminhou na sua direcção sem baixar o olhar.
- Olá Isabella.
- Philippe...
- Lamento muito...
- Obrigada. - Isabelle interrompeu-o, queria livrar-se dele o mais depressa possível - Matheus disse que querias falar comigo, mas não estou com cabeça.
- Vou ficar uns dias, falamos amanhã?!
- Não sei. - Teve a sensação que não era uma pergunta - Tenho muito que resolver...
- Certamente terás que almoçar ou jantar. - Foi a vez dele a interromper.
- Já tenho planos. E não vejo que assunto possamos ter em comum. Agora se me desculpas...
Isabelle colocou os óculos deu um passo e preparava-se para o segundo quando ele lhe segurou o braço, não estava a contar com aquele breve contacto, podia sentir o calor da sua mão a trespassar o tecido do casaco. Fixou a mão uns instantes, recordou o tempo em que sonhava com o toque dele, por muito breve que fosse, sentiu as lágrimas a rolarem pelo seu rosto caindo na mão dele.
- Sei que estás muito sensível, mas não aceito um não. Prometi a Matheus que esperava, mas se bem te recordas, paciência não é o meu forte. Existem coisas que ocultámos e tem de ser esclarecidas
- Não há nada a esclarecer. - Começou a ficar preocupada, puxou o braço tentando soltar-se, mas sem êxito -Solta-me.
- Já estás pronta? - A voz de Matheus chegou até ela como uma tábua de salvação.
- Sim. -Isabelle respirou de alivio quando Philippe soltou o braço dela.
- Amanhã. - A voz rouca de Philippe contrastava com a de Matheus, suave e calma - Amanhã ás onze, não te esqueças.
Ficaram o dois a observar como Philippe se afastava no carro a grande velocidade.
- As coisas passam mas deixam tantas cicatrizes! - Matheus colocou-lhe o braço por cima dos ombros. - Tens tempo para almoçar ou tens de ir apanhar Leo?
- Não tenho fome.
- Acredito, mas tens de comer. Vamos.
Caminharam abraçados pelos jardins, Matheus deu-lhe um beijo na testa e ela sorriu.
- Hector não vai ficar com ciúmes?
- Sabes que te adora. E se fossemos almoçar lá?
Isabelle colocou o braço na cintura dele sorrindo e saíram da propriedade. Matheus, namorava com Hector, dono de um dos melhores restaurantes da cidade, mas poucas pessoas sabiam. Como era advogado acharam melhor não assumir o namoro, as pessoas tendem a julgar os demais sem os conhecer. Ela conheceu Matheus na escola e pouco depois era um dos seus grandes amigos. Quando ele apareceu lá em casa com um olho negro, pedindo para dormir lá, cuidou dele sem fazer perguntas. Ela tinha as suas suspeitas quanto ao motivo, mas o amigo contaria quando o entendesse. A madrinha dela, por uns anos, pensou que gostava dele, e gostava, mas como de um irmão. Quando ele lhe confidenciou que era homossexual, abraçou-o e disse-lhe que isso não fazia dele menos homem, depois disso nunca mais falaram no assunto. Eram coisas pessoais, apenas a ele diziam respeito, no dia que lhe apresentou Hector ficou feliz por ele. Mas achava que deviam de se assumir, mas isso traria muitas repercussões, um dia quem sabe.
Sentaram-se numa mesa afastada, depois de cumprimentarem Hector que prometeu juntar-se a eles mais tarde, pediram uma salada de gambas e lombo com molho três pimentas.
- Estás muito calada.
- Estava a pensar no dia que nos conhecemos.
- Nostalgia?!
- Acho que a morte de um ente querido tem esse efeito sobre nós.
- Talvez. - Matheus segurou-lhe a mão - Acho que tentas evitar pensar em Philippe.
- Também.
- Tinhas a esperança que ele não voltasse?
- Sinceramente sim. É casado. Que raio quer de mim?
- Não quero assustar-te, mas pensaste na possibilidade de ele saber de Leo?
- Infelizmente sim, e isso aterroriza-me.
- Achas que tentaria tirar-to?
- Não acho, tenho a certeza. E perderia a batalha nos tribunais.
- Não necessariamente.
- Não tentes animar-me. Tenho plena consciência que perto dele não tenho nada, sou uma pedinte!
- Sim, anteriormente podia usar esse argumento, agora é mais difícil.
- Como assim?
- Até hoje podia alegar falta de condições económicas, mas agora a tua situação financeira é estável. Mas pode sempre obrigar-te a visitas periódicas.
- Pode?!
- Como pai da criança sim. Tem esse direito. Em tribunal o facto de esconderes Leo não abona a teu favor.
- Posso dizer que não sabia que ele era o pai.
- Podes, mas não é aconselhável Darias uma imagem nada bonita de ti e mais motivos para to tirar.
- Que vou fazer?
- Agora, almoçar. O amanhã resolvemos amanhã, não é isso que costumas dizer?
- Sim, mas...
- Mas estás a preocupar-te com coisas que ainda não chegaram. Ele disse algo que te levasse a pensar que sabe de Leo?!
- Sim.
- Sim?! - Matheus fez o característico estalido com a língua - Mau! Que disse?
- Algo sobre coisas que ocultámos e que temos de esclarecer.
- Pois... parece que sabe.
Isabelle levou as mãos à cara e tentou esconder as lágrimas.
- Que faço?! Diz-me.
- Podes usar o factor surpresa. Podes apresentar-lhe Leo antes que ele te pergunte por ele. Em tribunal mostraria a tua boa vontade.
- Nunca! - Isabelle deu uma palmada na mesa atraindo as atenções dos demais. - Desculpa. Não quero que ele faça parte da minha vida novamente.
- Então teremos que estudar muito bem o que fazer.
Hector juntou-se a eles pouco depois e acabaram o almoço sem falar em Philippe, Hector conseguia fazê-la sorrir, mesmo nas horas mais complicadas, tinha sempre algo caricato a contar sobre a sua infância na quinta dos pais. Quando deixaram o restaurante sentia-se mais animada. Mas quando ficou a sós com o filho, a sombra de Philippe ameaçou o seu sossego mental. Depois de deitar Leo fez um chá e ficou a observar o céu coberto de estrelas. Sentiria falta desta vista sobre a cidade, era uma zona calma junto ao parque municipal, o que lhe transmitia uma sensação de paz. Uma estrela cruzou os céus, fechou os olhos e fez um pedido como lhe ensinou a avó, era uma idiotice, deixar a sorte entregue a uma estrela fugaz. Mas mal não faria certamente. A campainha tirou-a daqueles doces pensamentos. Olhou o relógio, eram quase dez da noite, possivelmente Matheus queria confirmar se estava bem.
- Não precisas de... - Calou-se ao ver Philippe - Mas...
- Surpreendida?!
- Que fazes aqui?! - Baixou a voz ao perceber que estava a falar alto demais, não podia correr o risco de acordar Leo - Como sabes que...
- Isso não interessa. - Philippe entrou.
- Como não interessa?! E não te convidei a entrar.
- Que fazes neste buraco?
- Não é da tua conta.
- Estás à espera do teu amante?
Isabelle teve vontade de lhe bater, mas ou invés disso saiu-lhe um sorriso sarcástico, amante?! Mas que ele pensava que era?
- Tem piada a pergunta vinda de ti.
- Piada?! Não vejo onde está a piada.
- Está no facto de mentires para me levares para a tua cama!
- Se bem me lembro foste de livre e espontânea vontade. Acho bem que não deturpes os factos!
Sentiu as faces ficarem quentes de vergonha, sabia que era verdade. Uma gargalhada nervosa e involuntária saiu da sua garganta. Tinha de o tirar dali, antes que uma conversa mais agitada acorda-se o filho. Abriu a porta e fez um gesto apontando para o corredor.
- Deturpar?! - Passou uma mão pelo cabelo - Olha, é tarde e como te disse, estou cansada. Faz o favor...
- Não penso...
- Isabelle, este tipo está a incomodá-la? - O seu vizinho, que era professor, acabava de subir as escadas, colocou a pasta no chão e cruzou os braços olhando para ela.
- Obrigada Paul, o sr. Durant está de saída.
Philippe olhou para os dois, os seus olhos brilhavam de raiva. Passou por ela e parou no corredor, olhando Paul, como se estivesse a medir mentalmente as possibilidades, mas ela sabia que não era isso, perto de Philippe, Paul era um rapaz na puberdade. Olhou para ela, ao mesmo tempo que cerrava os punhos em sinal de frustração.
- Vou, mas para teu bem, espero que não faltes ao encontro.
- Não faltaria por nada deste mundo.
Sem comentários:
Enviar um comentário