- Tens a certeza que não te importas ?
- Deveria? - Caterine semicerrou os olhos.
- Não sei se...
- Perguntas isso por ter sido essa a minha função?
- Não é nada disso. Estás a organizar a festa de Natal, o que seguramente te dá imenso trabalho, tens a questão do apartamento, não tens porque...
- Eu sei. Vou tratar disso antes de ver o apartamento. - Caterine abriu a agenda - Penso resolver essa questão antes das cinco, depois vou ao centro comercial e antes de regressar vou com os Roice ver o espaço que escolheram. Como vês tenho tudo controlado.
- Só não quero sobrecarregar-te.
- Não o fazes. - Caterine olhou para Jess enquanto abria a porta do escritório - Jantamos juntas?
- Sempre que seja na tua casa...
Caterine sorriu ao fechar a porta do escritório e prontificou-se a deixar o edifício. Ao abrir a porta foi atingida pelo vento frio que se fazia sentir e apertou o casaco. Olhou para as pessoas que passavam a correr tentando proteger-se do vento, contrariamente à maioria delas, ela gostava daqueles dias!
Dias em que as nuvens cinzentas cobriam o céu, o vento trespassava a roupa, a neblina marcaria presença ao início da noite... Enfim, nada que não se esperasse do típico clima londrino.
Sentindo o vento frio entrar pelo casaco levou a mão à mala quando o som do telemóvel anunciou a chegada de uma mensagem. Com o telemóvel numa mão abriu a porta do carro e sorriu ao ler a mensagem de Jess. Um simples obrigada e um coração era o conteúdo da mesma.
Misturando-se no trânsito pensou que, embora conhecesse Jess à algum tempo, não a conhecia de todo.
Conhecera Jess quando esta colocou um anúncio pedindo uma secretária para a sua pequena empresa de organização de eventos. Depois da entrevista, visto a forma fria com que Jess a entrevistou, pensou que não ia conseguir o lugar. E essa era a sua convicção quando deixou o edifício, por isso ficou admirada quando, dois dias depois, Jess ligou para assinar contrato. Ao início a relação laboral foi algo complicada, Jess era muito exigente e mostrava-se uma pessoa fria e distante. O oposto dela, ela era calorosa com as pessoas e sempre disposta a ajudar. Talvez porque fora criada pela única família que conhecera, a mãe e a tia. Ambas tinham uma visão fantasiosa do mundo e incutiram-lhe o amor e o respeito pelos demais, assim como o espírito de entre ajuda. Sendo uma pessoa solidária e prestativa, lidar diariamente com Jess era esgotante, por isso quando terminava o dia de trabalho Caterine sentia-se exausta. Mas a situação acabou por aliviar quando se encontraram na sala de leitura do museu Britânico e, depois de breve conversa, perceberam que gostavam das mesmas coisas e que usavam as visitas a monumentos como escape ao stress. Nesse dia debateram a mudança da sala de leitura do museu, que inicialmente estava situada na Queen Elizabeth II Great Court, e costumava ser a principal sala de leitura do Museu Britânico.
Em 1997, esta função mudou-se para o novo edifício da Biblioteca Britânica em St Pancras, Londres.
Caterine achava bem, já que a Sala de Leitura, que fora oficialmente inaugurada em 2 de maio de 1857 com um "café da manhã" (que inclui champanhe e sorvete) dispostos nas mesas do catálogo, ainda permanecia na sua forma original no Museu Britânico, mas Jess não concordava por toda a história envolvente. Segundo Jess, deviam de ter em consideração a exibição pública realizada entre 8 e 16 de maio, que atraiu mais de 62 mil visitantes. Os ingressos para ele incluíram um plano da biblioteca... E a enorme lista de celebridades que visitaram a Sala de Leitura. Sun Yat-sen, Karl Marx, Oscar Wilde, Friedrich Hayek, Bram Stoker, Mahatma Gandhi, Rudyard Kipling, George Orwell, George Bernard Shaw, Mark Twain, Vladimir Lenin (usando o nome Jacob Richter), Virginia Woolf, Arthur Rimbaud, Mohammad Ali Jinnah, H. G. Wells e Sir Arthur Conan Doyle entre outros.
Caterine sorriu ao recordar o discurso de Jess. Depois desse dia as visitas a alguns dos muitos monumentos tornaram-se recorrentes e com o passar do tempo a relação delas tornou-se um pouco mais que laboral, mas não passava por confidências pessoais. Apenas depois de se tornar sua sócia, e durante uma visita à Abadia de Westminster, teve conhecimento que Jess não tinha qualquer contacto com os restantes familiares. O motivo era, no seu entender, no mínimo uma estupidez. Não via razão para se afastarem de Jess só porque não concordavam com as opções sexuais dela. Jess era uma das melhores pessoas que tinha conhecido, o que ela fazia na sua vida privada apenas a ela dizia respeito. Com o tempo percebeu que debaixo daquela aparência fria, Jess escondia um bom coração. Ela nunca esqueceria que Jess esteve ao seu lado quando a sua mãe faleceu. Sem ninguém, o apoio da amiga foi vital para conservar a sanidade mental. Muitas vezes pensava que o destino as juntara de forma a apoiarem-se mutuamente. Ao sentir uma lágrima deslizar pelo rosto, aumentou o som da radio e obrigou-se a pensar na decisão que tinha tomado. A compra de um apartamento.
Uma hora mais tarde, Caterine acabava de realizar as tarefas que Jess tinha pedido e estacionava junto ao lote de apartamentos. Respirando fundo subiu até ao terceiro andar onde a aguardava o agente imobiliário.
O apartamento era espaçoso e as enormes janelas permitiam que a luz natural entra-se em todas as divisões. A sala tinha vista para o parque e estava equipada com lareira, o que era vantajoso tendo em conta o frio que se fazia sentir. Os dois quartos eram amplos e muito bem iluminados, assim como a cozinha que estava equipada com os electrodomésticos mais modernos que ela já vira. A casa de banho tinha uma parede em vidro trabalhado que separava a banheira do restante espaço. Estava concebida de modo a proporcionar a privacidade e ao mesmo tempo a luz necessária ao espaço.
Caterina achou o espaço lindo, depois de decorado seria o seu refugio. Depois de meses procurando o local ideal finalmente tinha-o encontrado. Bastava assinar o contrato e aquele lindo apartamento seria seu.
Transpirando felicidade entrou no centro comercial e juntou-se às pessoas que entravam e saiam das diversas lojas. Depois de encomendar as flores para a festa comprou um ramo de rosas amarelas, as favoritas de Jess, e deixou a florista. Ao sair com o ramo na mão um homem embateu nela esmagando as preciosas rosas.
- Não acredito! - Caterine olhava abismada ora para o homem ora para as rosas quebradas.
- Desculpe. Não reparei que...
- Olhe só o que fez!
- Já pedi desculpas.
- As desculpas não se pedem!
- Evitam-se!
O tom de voz dele levou-a a calar-se e a olhar detalhadamente para ele. Era mais alto que ela, de cabelos negros e fartos, os olhos eram de um cinza escuro e naquele momento faziam recordar o céu londrino em plena tempestade. Os lábios cheios e vermelhos estavam comprimidos numa linha que mostrava o desagrado dele. Era gordo... Não! Era bem...
- São apenas flores! Se me disser quanto...
- Não são apenas flores! - Caterine calou-se ao perceber que a florista se tinha aproximado da porta de modo a ouvir. - Mas não tem importância.
- Não?!
- Sim, tem. - Caterine atirou as flores partidas para dentro de um balde que estava junto à entrada da loja - Mas agora não interessa.
Caterine afastou-se da loja, ficar ali a discutir com um desconhecido por causa de um ramo não ia resolver a situação. A única coisa que ia conseguir era atrasar-se e irritar-se. Tirou a agenda e procurou as anotações sobre o que tinha planeado comprar. Tinham decidido comprar algo personalizado para os funcionários, sempre detestara as ofertas que se fazem em série como se as pessoas fossem todas iguais. Bastou um pouco de empenho e dedicação para em pouco tempo conseguir saber o que gostavam e precisou apenas de dois dias para decidir que oferecer a cada funcionário.
Entrou na livraria e percorreu o pequeno corredor procurando o livro que pretendia oferecer ao segurança. Viu o livro que queria na prateleira de baixo e inclinou-se para o apanhar, nesse instante um livro bate nas suas costas e cai a seus pés. Ao levantar-se viu uma criança que a olhava com lágrimas nos olhos.
- É teu?
- Desculpe... - A voz da criança era quase inaudível - Não queria...
- Oh, não me acertaste. - Caterine mentiu e olhou o titulo do livro - Era isso que pretendias?
- Não consegui segurá-lo...
- " Viagem ao centro da terra" gostas de Júlio Verne?
- É para o meu pai.
- Boa escolha. - Caterine estendeu o livro à pequena - Tenho a certeza que vai gostar.
- Obrigada.
Caterine sorriu e dirigiu-se à caixa. A pequena tocou no seu braço chamando a sua atenção.
- Feliz Natal.
- Obrigada. - Caterine acariciou o rosto da pequena - Um Feliz Natal para ti também.
O breve percalço com aquela criança devolveu-lhe a boa disposição. O seu estômago recordou-lhe que não tinha comido e depois de olhar o relógio entrou na sua pastelaria favorita e pediu um cappuccino bem quente e um bolo. Ao percorrer o local com a vista sentiu-se desanimar, este estava completamente cheio! Nunca conseguiria mesa. A proximidade do Natal fazia as pessoas saírem de casa em busca do presente certo e a meio da tarde todas procuravam algo que comer. Avistou ao fundo uma mesa vazia, caminhou até lá com o tabuleiro na mão, mas ao passar junto a uma mesa um homem levantou-se derrubando o tabuleiro para cima dela.
- Ai!
Ao sentir a pele arder pelo calor do cappuccino Caterine largou o tabuleiro partindo a chávena, o que, ainda que momentaneamente, chamou a atenção dos presentes.
- Desculpe.
- Só podia! - Caterine sentiu-se enfurecer ao ver o causador daquela situação.
- Devia de ter mais cuidado.
- Mais cuidado?! Eu?! - Ela fulminou-o com o olhar enquanto sacudia a camisola.
- Caterine?!
Caterine voltou-se e viu Nelly, a sua antiga colega de escola e dona da pastelaria. Forçou um sorriso e voltou a sacudir a camisola que ao tocar na pele ardia como se voltasse a derramar cappuccino em cima.
- É melhor tirares essa blusa.
- Concordo.
Ao ouvi-lo concordar com Nelly sentiu a raiva crescer. Como podia estar tão sereno se a culpa era dele?!
- Vou limpar-me. - Caterine ignorou o comentário dele.
- Vem comigo. - Nelly agarrou a mala dela e os sacos.
Nelly levou-a até aos vestiários e abriu a porta de um dos armários.
- Toma. - Nelly deu-lhe um creme - É melhor colocares antes que isso fique vermelho.
Caterine despiu a camisola ficando apenas com o soutien.
- Realmente hoje não é o meu dia de sorte. - Caterine passou o creme na pele que começava a ficar vermelha - Não posso andar assim!
- Podia emprestar-te uma camisola minha, mas sou bem mais pequena que tu.
- Não te preocupes. - Caterine respirou fundo - Estou apenas a desabafar.
Caterine atirou com a camisola para dentro dum saco e vestiu o casaco sobre o corpo nu. Ao sentir o tecido frio sobre a pele estremeceu.
- Se me aparece à frente acho que esqueço que estamos em plena quadra natalícia.
- Foi apenas azar. Parecia-me bastante transtornado.
- É bom que se sinta mesmo!
Quando se encontrou com os Roice ainda estava de mau humor. Mas a conversa sobre o que pretendiam para o bufete e o tipo de decoração, afastou qualquer rancor que ela sentisse em relação ao desconhecido.
Duas horas depois despediu-se deles sentindo-se realizada. Embora não tivesse horário fixo para deixar o escritório gostava do seu trabalho. Depois de aceitar ser sócia de Jess, graças à herança que recebera, ficara encarregue da decoração dos espaços sempre que era exigido pelos clientes, não gostando de decoração, Jess preferira a parte do catering. Muitas vezes ela e Jess ficavam até altas horas da noite para que tudo corresse da melhor forma.
O som do telemóvel interrompeu os seus pensamentos.
- Sim!? - Caterine atendeu no auricular.
- Onde estás?! - A voz de Jess parecia preocupada.
- Mais dez minutos e estou a chegar ao escritório.
- Ao escritório!?
- Sim. Preciso entregar os esboços... - Ela calou-se ao ver as horas - É assim tão tarde!?
- Sim! E fiquei preocupadíssima ao ver que não estavas em casa.
- Estás em minha casa?!
- Não íamos jantar?
- Sim. Desculpa, fica à vontade.
- Já estou à vontade.
- Nesse caso podes colocar o bacalhau no forno?
- Sou convidada e tenho de trabalhar... Onde se viu isto...
- Até já.
Caterine sentiu um nó na garganta. Fazia algum tempo que ninguém se preocupava com a ausência dela. A única pessoa que o fazia era a sua mãe... Embora o natal fosse a sua época preferida sentia mais saudades da sua mãe. Aumentou o volume do rádio e começou a cantarolar enquanto as lágrimas caíam pelo rosto.
Quando entrou no seu apartamento o cheiro a bacalhau enchia o ar.
- Obrigada.
- Porquê!? - Jess estendeu-lhe um copo com vinho branco .
- Por colocares o bacalhau no forno.
- Estás a esquecer que também é o meu jantar!?
- Pois é ! - Caterine bebeu metade do líquido de uma só vez .
- Ei!!! Calma rapariga.
- Tive uma tarde... Nem te conto.
- Eu sabia que não devia de ter permitido...
- Não é nada disso! Senta-te aí. Quando cheguei...
Caterine contou a Jess as peripécias que lhe tinham acontecido e mostrou a sua camisola que tresandava a cappuccino.
- Nem parece teu.
- Não!?
- Tens sempre paciência e desculpas tudo e todos.
- Mas duas vezes no mesmo dia e com a mesma pessoa... É dose!
- Imagino a cara do pobre homem. Deve de ter ficado preocupado quando derramou o cappuccino em cima de ti.
- Não sei... Oh Deus!!!
- Que foi!?
- Lembrei-me de uma coisa.
- Que é ...
- Já pensaste se ele era daquele programa de televisão, daquele que vão pregando partidas às pessoas para ver a reação delas.
- Achas?!
- Não sei. Mas que acho suspeito tanta coincidência isso acho.
- Estás a imaginar coisas. - Jess colocou o copo vazio em cima da mesa - Dada a época que estamos, acho perfeitamente normal que se tivessem cruzado várias vezes. Não é a primeira vez que vemos a mesma pessoa mais que uma vez e no mesmo dia. Principalmente no natal, as pessoas sempre esquecem algo e por isso passam várias vezes pelo mesmo estabelecimento.
- Achas?
- Tenho a certeza. - Jess sorriu - Mas com tanto encontro azarado o pobre não deve é ter sorte nenhuma.
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