sábado, 16 de novembro de 2024

O Padre IV parte







Valerie deixou Mary em casa e caminhou pelas ruas praticamente desertas. Naquele momento sentia que precisava de algum tempo para assimilar toda a informação que Mary lhe dera. Como sempre, não
compreendia todo o secretismo em redor da família materna. Durante toda a sua vida raramente ouvira falar dos seus avós maternos.
Gostava que a sua mãe fosse uma pessoa mais aberta, mais acessível, se a mãe fosse diferente ela poderia fazer-lhe todas as perguntas que pairavam na sua cabeça naquele momento. Se bem que não era apenas a relutância da mãe em falar da família, ela própria não se sentia à vontade para falar abertamente com a mãe sobre certos assuntos. Nunca o fizera. Se fosse o pai o caso era diferente, a ligação entre eles era especial e ela nunca se coibiu de fazer todas as perguntas que achou necessárias. Perguntas às quais ele respondia sem lhe esconder nada. Ela sabia perfeitamente que o pai era filho de lavradores, gente humilde mas, como ele dizia, honrada e lutadora. Os avós paternos já tinham falecido quando ela nasceu e sendo o pai filho único não havia familiares para conhecer. Por outro lado a mãe apenas falava sobre os seus familiares quando era estritamente necessário. E mesmo nesses casos as respostas eram vagas e difusas, nem mesmo quando na escola teve que fazer um trabalho sobre a família a mãe foi especifica. Sempre respondia com frases curtas e concisas. E quando, anos mais tarde, arranjou coragem para lhe perguntar diretamente sobre os avós, esta respondeu que eram pessoas como as outras e não entendia o motivo de tanta curiosidade. E dito isto bateu a porta do armário, o que na altura lhe pareceu exagerado, e não voltou a falar durante o resto da noite. Decididamente o melhor era aguardar por uma nova visita de Mary ou tentar encontrar respostas nos velhos álbuns de fotografias. Quem sabe se durante a mudança não encontraria cartas que lhe dessem alguma luz sobre os seus antepassados. 

O cheiro a café interrompeu os seus pensamentos. Era mesmo isso que precisava, um café para colocar ordem nos seus pensamentos! Olhou em redor e não demorou a descobrir de onde saía o delicioso aroma. Aproximou-se da pequena pastelaria e ficou encantada com o edifício. No primeiro andar podiam ver-se duas janelas de madeira pintadas de branco. Numa delas um gato espreitava as pessoas que passavam. O rés-do-chão as pequenas janelas foram substituídas por enormes vidros que ocupavam a fachada do edifício permitindo que a luz natural entrasse no espaço ao mesmo tempo que permitia ver quem estava no interior. Sentindo um pouco de vergonha olhou para o interior, apenas duas mesas estavam ocupadas. Colocou a mão na porta mas naquele momento recordou que tinha saído para ler não para fazer compras e como tal não tinha a carteira consigo. Sem pensar voltou-se rapidamente mas ao invés de sair dali acabou nuns braços fortes que a seguravam levemente.


- Desculpe, eu... - Calou-se ao perceber que esbarrara no estranho da cabana do lago e afastou-se dele como se disso dependesse a sua vida. 
- Pelo menos desta vez não me bateu com a porta.
- Não lhe bati! Eu não ...- Calou-se novamente ao ver o olhar divertido dele. O que a irritou ainda mais. - Você...
- É sempre assim? Arisca?
- Arisca eu?! Você é que é um... - Valerie olhou-o sem saber que adjetivo lhe atribuir.
- Um...
- Olhe. Tenho mais que fazer que perder o meu tempo com gente petulante. Com sua licença!

Valerie retrocedeu sem pensar e se o desconhecido não a segurasse rapidamente teria caído no meio da estrada pois não percebeu que a calçada tinha terminado dando lugar à estrada que era uns dez centímetros mais baixa.

- Obrigada. 
- Finalmente uma palavra amável. - O desconhecido sorriu ligeiramente mas o sorriso desapareceu rapidamente - Desculpe. Acho que começámos mal e estamos a repetir os mesmos passos. Erick Evans. 

Valerie olhou a mão que ele lhe estendia tentando perceber se ele estaria novamente a brincar com ela.


- Não precisa ficar desconfiada. - Erick sorriu abertamente - Estou apenas a corrigir um lapso e dar uso à boa educação que a minha mãe me deu. Ou não acredita que todos merecemos uma segunda oportunidade?
- Tem razão. -  Valerie aceitou a mão dele e sorriu ligeiramente. - Valerie Dow.
- Agora que nos conhecemos formalmente, aceita um café?
- Acho melhor não. - Olhou em redor, grupos de crianças e adolescentes corriam com mochilas às costas rindo despreocupadamente enquanto alguns adultos caminhavam apressadamente.
- Prefere algo mais forte?
- Mais forte?!
- Acha que as mulheres só podem beber café e chá?
- Claro que não!
- Então?!
- Então o quê?! - Valerie tinha a sensação que estava num filme de muito má qualidade.
- Aceita o meu convite? Estamos aqui à algum tempo e acho que estamos a gerar alguma curiosidade.

Valerie olhou para dentro da pastelaria. Não lhe pareceu que as pessoas estivessem a olhar para eles mas, dado o esforço dele, achou indelicado recusar. Era apenas um café, café esse que ela já teria bebido se não tivesse deixado a carteira em casa. Nunca mais sairia de casa sem dinheiro! No seu íntimo sabia que o mais correto era regressar em vez de aceitar o convite mas naquele momento uma pisca de rebeldia apoderou-se dela. Afinal não estava a fazer nada de mal.

- Muito bem. - Valerie olhou-o seriamente - Aceito um café.
- Fantástico.

Dirigiram-se a uma das mesas e se a entrada deles suscitou alguma curiosidade aos poucos clientes  estes dissimulavam muito bem. Quando um rapaz alto e magro se aproximou da mesa Erick pediu dois cafés. 

- É nova na vila?
- Podemos dizer que sim. 
- Podemos... isso quer dizer que sim ou que não?
- Faz diferença?
- Desculpe. É apenas curiosidade. Eu cheguei à alguns meses e nunca a vi por aqui. - Erick olhou-a fixamente - Não me diga que é a dona da casa do lago?
- Obrigada. - Valerie agradeceu ao rapaz que trouxe os cafés. - Eu?! Não. Tenho apenas uma casa na cidade. Bom, é do meu marido não minha.
- Se estão casados, é sua também.
- Pois...
- Mas diga-me, se não é sua, a casa do lago, o que a levou até lá?
- O mesmo que você.  Curiosidade.
- Hum... deixe-me adivinhar. - Erick bebeu um pouco de café e olhou-a por cima da chávena - Tendo em conta o livro diria que é escritora e neste momento está numa impasse no novo romance. Como tal decidiu esconder-se num vilarejo em busca de inspiração. Acertei?
- Nada mais longe. - Valerie sorriu - Sou apenas uma simples dona de casa.
- Hum... não meparece. Tenho a sensação que é tudo menos simples.

Valerie sentiu o corpo estremecer. Porque lhe parecia que aquela frase tinha um duplo significado? Acaso tinha gravado na testa que a sua vida, pelo menos depois de casar, era uma sucessão de desgostos? Pensar no casamento trouxe à sua memória que o marido chegaria a qualquer momento. Se o marido soubesse que estava a beber café com outro homem não iria gostar. E ela sabia bem que o marido não aceitaria nenhuma explicação. 

- Acho melhor regressar. Está a ficar tarde. 
- Deixe-me acompanhá-la a casa.
- Obrigada mas é melhor ir sozinha. - Valerie sorriu e estendeu-lhe a mão - Obrigada pelo café.
- Preferia acompanhá-la. 
- Agradeço mas não vejo necessidade. Vivo aqui perto. 

 Erick levantou-se e por momentos Valerie temeu que ele insistisse em a acompanhar até casa mas ele voltou a sentar-se quando ela se afastou da mesa. Se o marido não fosse tão ciumento teria aceitado a companhia pois estava a ficar escuro e ela não conhecia a região mas perante a incerteza da chegada de Steven era melhor arriscar perder-se. Afinal era melhor ouvi-lo por ser irresponsável que por chegar a casa acompanhada de um estranho e dar lugar a uma discussão diante da sua mãe. Ajeitou o casaco e dirigiu-se ao caminho que Mary lhe tinha ensinado. Se tudo corresse bem estaria em casa em vinte minutos. Mas não chegou no tempo pretendido pois a suas pernas acusaram cansaço e quando avistou o portão do solar já o sol se escondia atrás das árvores. Como gostaria de ter retomado as suas caminhadas! Fazer duas caminhadas, ainda que com uma pausa, não era tão fácil como outrora. Era isso! Enquanto ali estivesse iria retomar o seu exercício matinal. 

- Gostaste do passeio? - A sua mãe levantou o olhar da revista que estava a ler.
- Sim. Foi bastante agradável, Estive a pensar e acho que vou retomar as minhas caminhadas. 
- Retomar? Pensei que ainda as fizesses.
- Na cidade não é a mesma coisa. - Valerie colocou um pau na lareira que estava a esmorecer - Steven ainda não chegou?
- Não. - Lana colocou a revista na mesa - Está tudo bem com vocês?
- Como assim?! - Valerie sentiu o coração acelerar.
- Não sei. Acho estranho Steven não te ligar... era tão apegado a ti, sempre pendente do que querias e desejavas. 
- Isso era no tempo de namoro, sabes melhor que eu que depois de algum tempo de casados tudo isso passa. 
- Nem sempre. 
- Nem todos os homens são como o pai.
- Como o teu pai...

Valerie sentiu um misto de culpa e pena por ter recordado à mãe aquele que fora o seu companheiro de uma vida. Era bem visível que ainda lhe custava a ausência dele.

- Vou tomar um duche e já desço para fazer algo para jantarmos.
- Não uses a casa de banho do teu quarto. Substituíram a banheira, disseram que estava com uma fuga. Uma fuga... desculpas para aumentar a factura!
- Não te esqueças que já têm alguns anos.
- Eu sei. Mas também sei que muitas vezes são feitos trabalhos sem necessidade.
- Se te preocupa o pagamento posso falar...
- Não ias tomar duche?
- Pronto... já me calei.

Enquanto subia as escadas ouviu a sua mãe murmurar algo. Como gostaria que ela falasse abertamente sobre o que a preocupava, sobre a irritação dela ao falar das despesas, sobre o que a levara a querer deixar a quinta onde viveu, a colocar a mesma no seu nome quando sabia que Steven não apreciava a vida no campo. Certamente, mal soubesse que a quinta era legalmente dela, iria querer vender. E de nada adiantaria ela apelar pois Steven já tinha provado que nos negócios não há lugar para sentimentalismos. Era por isso que ele era um ótimo homem de negócios. 
Abriu a torneira e olhou a água que escorria pelos azulejos da parede pensando que algum problema deveria haver na empresa para que Steven se ausentasse. Ele nunca se afastaria dela de livre vontade, muito menos sem ela ter alguém para a controlar, e sem data de regresso. Não era como se estivesse sozinha, estava ali com a mãe e o solar não era a cidade. Ali não haveria o risco de ela se cruzar com algum amigo ou conhecido e originar mais uma crise de ciúmes. 

Nessa noite dormiu profundamente e acordou com o som do portão a abrir. Sinal que o dia estava a nascer e que Tim iniciava mais um dia de trabalho. Vestiu um fato de treino e desceu fazendo o menor ruído possível. Tim já se encontrava no barracão.


- Bom dia Tim.
- Bom dia menina. - Tim tirou o gorro para falar com ela - Vai correr? Olhe que a mata é fresca até quando o sol vai alto, imagine a esta hora.
- O exercício vai ajudar a aquecer. - Valerie deu dois passos e depois olhou novamente para Tim - Posso perguntar-lhe uma coisa?
- Claro menina.
- O meu avô. Conheceu-o?
- Não posso dizer que conhecia. - Tim baixou o olhar e mexeu nervosamente o gorro - Só o que ouvia comentar e, se a menina não se importar, preferia não repetir não vá errar.
- Tudo bem, não se preocupe.
- A minha mãe conheceu-o. Porque não vai lá a casa um dia destes? Tenho a certeza que ela ia adorar falar sobre esses dias. Tinha muito orgulho em trabalhar para o seu avô. 
- Irei. Obrigada.
- Ora essa menina. - Tim colocou o gorro e sorriu - É melhor começar a trabalhar. Bom passeio.
- Obrigada e bom trabalho.

Valerie atravessou o portão e fez uns exercícios de aquecimento junto ao banco. Realmente estava mais fresco na mata. Mexeu energicamente os braços e iniciou a caminhada seguindo pelo mesmo caminho que fizera no dia anterior com Mary. Alguns metros depois o caminho dividia-se em dois. Não tinha notado aquele trilho no dia anterior. Onde iria terminar? Seria uma nova entrada para a vila? Iria dar a algum castelo? A um solar, uma quinta? Teria habitantes e estes seriam amigáveis como os restantes habitantes da vila? Mas, e se não gostassem de visitas?! E se fossem como alguns eremitas que detestam gente de fora? Talvez não fosse boa ideia ver até onde ia dar. Retrocedeu e retornou ao caminho que conhecia mas a curiosidade venceu o temor que tinha e pouco depois caminhava em passo acelerado no até então trilho desconhecido.
Algum tempo depois um ruído ouviu-se ali perto. Parou e escutou atentamente. Parecia-lhe o som de pequenos ramos a partir-se à passagem de algo ou alguém. Possivelmente um animal em busca de alimento. Talvez um esquilo. Que idiota! Os esquilos não andam no chão e naquela época do ano dormem a maior parte do tempo. Só podia ser um animal de grande porte e selvagem. Perante a ideia de ser um animal selvagem o seu coração disparou. Naquele momento o som pareceu-lhe mais perto... isso ou o seu coração batia de tal forma que parecia ter-se mudado para a sua cabeça tornando o barulho ensurdecedor. Decididamente não deveria ter saído do caminho que conhecia! Apesar do som cada vez mais perto não se conseguia mexer. Seria uma presa fácil! À sua frente surgiu uma figura e ela não conseguiu conter uma gargalhada nervosa.

- Erick! Graças a Deus.
- Não está com boa cara. Está tudo bem?
- Agora sim. 
- Agora? Anteriormente não estava?  
- Não... sim... 
- Bom, sei que as mulheres são algo complicadas mas nunca imaginei que fossem também confusas.
- Desculpa, pensei que era um animal selvagem.
- Animal selvagem? Entendi... 
- Ouvi um barulho e pensei que seria um lobo ou algo parecido.
- Duvido que haja lobos por aqui mas, imaginando que houvesse, nunca iriam andar de dia durante o inverno. Sabias que o homem tem exterminado uma boa parte deles? 
- Dos lobos?
- Sim. Muitas vezes são envenenados ou acabam por morrer em armadilhas ao tentar encontrar comida.
- Que horror!
- Bom, alguns entram nos galinheiros o que não agrada aos agricultores.

Valerie não soube em que momento a caminhada se tornou um passeio aliado a uma aula sobre a vida animal. Deu por si fascinada com o conhecimento dele sobre a fauna e a flora e sentiu que podia ouvi-lo todo o dia. Erick comentou que na vila havia um centro de apoio à fauna e que estes sobreviviam de doações. Que tinham feito trilhos, como aquele que eles percorriam, para que os amantes da natureza pudessem apreciar a mesma. Alguns deles passavam por moinhos abandonados, casas e até um castelo. Mas no caso do castelo este não estava abandonado, tinha sido restaurado e servia de museu da vila.

- Um dia tenho que ir lá. 
- Não te vais arrepender. É digno de ser visitado.

Por alguns minutos caminharam em silêncio como se as caminhadas fizessem parte da rotina deles. Valerie olhou disfarçadamente. Apesar de estar descontraído tinha a sensação que algo o preocupava. Talvez pela sombra de tristeza que vira nos seus olhos cor de mel. 
Valerie achou melhor não se debruçar na descoberta do desconhecido, levantou o rosto e percebeu que estavam perto vila. Sem falarem sobre o assunto entraram na pastelaria do dia anterior e sentaram-se como se o tivessem combinado no dia anterior. 
E, para sua surpresa, essa passou a ser a sua rotina diária. 
Saía assim que Tim chegava ao solar e caminhava calmamente até se cruzar com Erick.  As caminhadas deixavam-na com um humor diferente, era como se o dia tivesse um outro brilho. E as conversas deles não poderiam ser mais diversas e interessantes.  Apesar de continuar sem saber muito bem quem era o seu companheiro de exercício ela gostava da companhia dele e de uma coisa ela tinha a certeza.  Ele era muito culto e educado. 
Tomavam o pequeno almoço pelo quarto dia consecutivo quando ela viu passar o carro do marido. Naquele instante o seu coração disparou e tinha a certeza que o seu rosto perdera a alegria que ultimamente reflectia.

- Tenho que ir. 
- Está tudo bem?
- Está tudo como sempre.  Simplesmente eu... - Valerie calou-se, não queria ensombrar aqueles momentos com as suas preocupações - Obrigada por estes dias, gostei muito.
- Parece uma despedida. 
- Talvez.
- Espero que não seja. 
- Eu também.  - Valerie sorriu sem jeito. -  Gostava que as coisas fossem diferentes. 

 Parecia uma adolescente no seu primeiro encontro sem saber que dizer. O problema residia em que não era adolescente e muito menos uma mulher livre. E como ela gostava de ser. Ou pelo menos lutar por isso. 










segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O Padre III parte



Acordou com o sol a bater-lhe no rosto sentindo uma tranquilidade que há muito não sentia. O silêncio que reinava no quarto dizia-lhe que Steven já tinha descido.  Sorriu ao recordar a noite anterior e sentiu-se envergonhada por o temer. A conversa entre eles fluíra de tal forma que só perceberam o adiantado da noite quando a lareira começou a enfraquecer. Steven fez ao careta ao ver  que o cesto da lenha estava vazio. Segundo ele sinal que estava na hora de dormir. Lembrava de ter sorrido e aceitado a mão dele para se levantar do tapete pois o sofá, devido ao uso, era demasiado incomodo e eles acabaram por se sentar no chão. 
Um som que ela não conseguiu distinguir levou-a a ir até à janela. Steven tentava empurrar um velho carro de mão cuja roda pedia a gritos um pneu novo. Entre o chão húmido pelo orvalho e a falta de roda a cena tinha algo de cómico. 
Decidida a desfrutar daquela luta desigual deixou-se ficar à janela mas pouco depois Steven regressou a casa dando o "espetáculo" por terminado. Nesse instante um pássaro voou junto ao vidro e como que hipnotizada seguiu-o com o olhar até ele desaparecer por entre as árvores.  Como gostaria de ser livre como ele...
Temendo chorar ou deixar-se levar por pensamentos negativos vestiu-se e desceu. 

- Droga! Mas como raio funcionas?!

Steven mexia na cafeteira que fazendo um ruído estranho lhe dava uma água "suja" por pó de café.

- Meteste o café no filtro?
- Filtro?! É suposto?
- Deixa que eu faço. - Valerie procurou os filtros sob o olhar atento dele- A minha mãe também fazia café numa máquina destas. 
- Então é tradição de família.
- Não sei. Não conheço mais ninguém da família. 
- Estranho. 
- Porquê?
- Por acaso tu achas normal não conheceres a tua família? - Steven olhou-a uns instantes e depois continuou - Pois...  Começo a achar que as minhas conversas com a tua mãe têm duplo sentido.
- Se fossem só as tuas. - Valerie ligou a máquina e olhou para ele - Às vezes também tenho essa sensação. De que não está a dizer exatamente o que quer.
- Ou que esconde algo.
- Isso. - Valerie olhou para o liquido negro que enchia a chaleira e agarrou uma caneca - A minha mãe é uma mulher muito misteriosa. Principalmente no que diz respeito ao seu lado da família. Por exemplo, eu só estive aqui duas ou três vezes. 
- Eu passava a vida em casa dos meus avós- Steven agarrou a caneca que ela lhe estendia - Finalmente um café. Vamos aproveitar este sol e tomar o pequeno almoço lá fora?
- Boa ideia.

 Sentaram-se nos degraus da varanda e, para sua surpresa não retomaram a conversa,  ficaram apenas olhando o jardim que, apesar de limpo, precisava de cuidados específicos. Algum tempo depois o barulho de um carro fê-los levantar acreditando que seria a sua mãe mas, em vez dela, saiu do carro um homem forte que acenou na direção deles.  

- Conheces? - Steven olhou para ela e depois para o homem que estava junto ao enorme portão de ferro preto.
- Não...

Institivamente ela segurou a mão dele ao mesmo tempo que caminhavam na direção deste.

- Bom dia. - O homem retirou o gorro - Peço desculpa por vir cedo mas por aqui acordamos primeiro que o sol. - Ele sorriu abertamente para Valerie - A minha mãe não se enganou, a menina é igualzinha à sua avó. - Nesse instante o seu rosto ficou ligeiramente avermelhado - Desculpem os meus modos. Sou Tim, tagarela por natureza, a minha mãe era governanta no solar e pediu para os receber. Peço desculpa por não estarmos aqui quando chegaram mas já era tarde para o nosso filho.
- Não se preocupe. Só temos a agradecer a vossa disponibilidade - Steven abriu o portão . - Não sabia que ainda havia trabalhadores no solar.
- Na realidade não somos mas sabe como são as localidades pequenas. O sentido do dever fala mais alto. - Tim colocou o gorro novamente - Espero que a casa estivesse minimamente confortável. E que tenham gostado do bolo. É o favorito do meu filho. 
- Estava muito bom. - Valerie olhou para o carro tentando perceber se estava sozinho - Não quer entrar?
- A sua mãe já chegou?
- Ainda não.
- Nesse caso agradeço mas vou começar por ver o que se pode fazer no barracão e nos estábulos.
- Não entendi. - Valerie olhou para Steven que se mantinha em silêncio - Vai ficar aqui?
- A sua mãe pediu ajuda à minha mãe que por sua vez me pediu a mim. E como sabe nunca se nega um pedido a uma mãe. Não precisa de me acompanhar, conheço o solar como a palma da minha mão. 

Sem aguardar resposta Tim entrou no carro e fê-lo atravessar o enorme portão. Para surpresa deles, após retirar um bloco e uma caneta do carro, encaminhou-se para as traseiras do solar desaparecendo entre os enormes arbustos.

- Todo um personagem.
- Mesmo.

Valerie manteve o olhar no caminho que Tim tomara sem qualquer cerimónia. 

- A minha mãe não te falou nele?
- Não. Imagino que, como não nos recebeu ontem, se tenha sentido na obrigação de vir.
- Talvez. 
- Acho melhor seguir o exemplo de Tim e iniciar a vistoria antes que a tua mãe chegue.
- Até porque em algum momento teremos que  o fazer.

Mas, ao invés de seguir Steven até casa, ela ficou a admirar a enorme casa que se erguia diante dela.
A imponente construção estava praticamente coberta pela hera que apenas deixava ver uma ou outra pedra da construção e as janelas de madeira. Ao aproximar-se da entrada fechou os olhos e recordou a primeira vez que entrou ali. 

Iria entrar esse ano para a escola e a sua mãe deixara-a no jardim aguardando. Recordava que estava assustada pelo tamanho da casa e por esta não ser pintada como a sua mas depressa esqueceu o medo quando um cachorro correu na sua direção para lhe lamber as mãos. Sorriu ao recordar o velho pastor alemão.

- Apesar de teres vindo poucas vezes parece que foste feliz aqui. 
- Não me recordo muito bem mas acho que sim. 

Valerie não pode deixar de notar no ar  descontraído dele. Sentiu-se algo idiota por se ter preocupado demasiado com aquele fim-de-semana. 

- Bom, vamos mas é fazer algo. - Steven arregaçou as mangas. 
- Vou abrir as janelas a casa precisa de luz natural. 
- Eu vou verificar as torneiras e as tomadas.


Após abrir as janelas dirigiu-se à cozinha. Desligou a máquina do café e olhou em redor, a luz do dia revelava toda a grandeza e elegância do espaço. Cada móvel parecia desenhado para facilitar as tarefas ali realizadas. Os armários, de madeira castanha, ocupavam praticamente toda a altura das paredes, as portas tinham uns puxadores de ferro que lhe conferia um ar campestre. No centro uma mesa enorme com duas gavetas e uma base por baixo cheia de cestos de vime. Abriu os armários um a um e ficou admirada com a organização destes. Certamente obra da mulher de Tim. Nem queria imaginar a trabalheira que a pobre mulher tivera. Trabalho em vão pois teriam que retirar tudo e verificar o que ainda se podiam usar, passado tantos anos certamente haveria muita coisa que atualmente não tinha utilidade mas isso competia à sua mãe decidir. Ao abrir a última porta ficou atónita com tanta caneca mas o seu olhar prendeu-se numa em específico. Uma caneca branca com um cavalo em relevo.
Aquela simples peça de loiça fê-la recordar a última vez que ali tinha estado. Tinha onze anos e a visita  acontecera durante o verão.
Aquela seria diferente que, contrariamente às anteriores que eram escassas e curtas, aquela seria uma visita mais demorada pois o seu pai estava internado devido a um coice de cavalo e a sua mãe decidiu que o melhor era ficar uns dias com a avó até que o pai estivesse recuperado. Lembrava-se da enorme curiosidade em explorar a mansão e arredores. Cada divisão era uma aventura para ela e quando se juntava à avó as perguntas sucediam umas às outras sem dar descanso á pobre mulher. Apenas quando descobriu a biblioteca foi parca nas perguntas. Nesse dia só lhe ocorreram duas perguntas: São todos seus? E posso ler? A avó mal teve tempo de responder pois saiu disparada em direção á biblioteca e levou três dias a percorrer as estantes. Depois a sua atenção foi captada pelos enormes quadros pintados à mão, que decoravam o corredor do andar de cima onde estavam os quartos. Também eles vitimas da sua curiosidade e quando a avó lhe disse que a maioria eram familiares tivera a sensação que afinal não estava tão sozinha como pensava. Depois desse dia, sempre que saía do quarto ao acordar, percorria o corredor dando os bons dias a todos. Sorriu ao recordar a vénia que fazia ao tetravó que segundo a sua avó era duque...

- Um milhão pelo motivo desse sorriso.
- Ah?! - Valerie olhou para o marido sem entender.
- Estavas a sorrir e a olhar para o infinito como se estivesses noutro lado. 
- Estava a recordar a... - O som do telemóvel encheu o ar  e percebeu que Steven estava relutante em atender. - Não vais atender? Pode ser importante.
- Pois...

Valerie seguiu o marido com o olhar enquanto este se afastava ao mesmo tempo que atendia a chamada. Devia ser do escritório, ele não gostava de falar de negócios diante dela. O pouco que sabia era o que ouvia nos jantares de natal e fim de ano da empresa. Steven ficara à frente da empresa de exportações quando o pai dele decidiu aproveitar os anos que lhe restavam a conhecer o mundo. A única coisa que ela sabia concretamente era que o marido era bom no que fazia pois segundo o gerente do banco a conta aumentava substancialmente.  Tudo graças ao trabalho e astúcia dele. As exportações tinham aumentado e Steven investiu parte dos rendimentos em imóveis o que aumentou os rendimentos  mas também a sua carga laboral. Sabia que ele procurara alguém para o ajudar mas a última  vez  que  o ouvira falar  nisso ainda tinha conseguido. Se tivessem um casamento normal podiam falar dessas coisas abertamente. 

- Já me tinha esquecido o incómodas que são estas viagens. - Lana colocou uma pequena mala no chão e estendeu os braços na direção da filha - Espero que vocês tenham dormido bem.
- Sim, muito bem. - Valerie depositou um beijo no rosto da mãe e abraçou-a - Porque não veio conosco?
- Para atrapalhar?! - Lana afastou-se da filha e olhou o enorme salão - Steven queria contratar uma empresa para recuperar e limpar a casa mas neguei-me. 
- Porquê?! - Valerie olhou a mãe sem saber se estava mais admirada por esta negar a oferta de Steven se por este se ter oferecido.
- Olha... porquê... porque não preciso de esmolas.
- Não era uma esmola. - Steven entrou nesse momento - Mas respeito a sua decisão. - Steven voltou-se para Valerie - Podemos falar em privado?
- Claro.

Valerie segui-o em silêncio até ao quarto ainda meio atónita com a recusa da sua mãe. Sempre dissera que toda a ajuda é bem vinda. Porque se negava a aceitar a ajuda dele?

- Tenho que voltar à cidade. - Steven agarrou a mala e colocou as poucas coisas que tinha trazido.
- Algum problema?
- Nada que não se resolva. - Steven fechou a mala e olhou para ela - Não há necessidade de ires, são coisas da empresa e penso voltar amanhã mesmo. 
- Se é isso que queres. 
- Desculpa sair assim mas tenho mesmo que ir. A minha ideia, já que a tua mãe recusou a minha ajuda financeira, era ajudar no máximo que pudesse durante o fim de semana, mas não estava a contar com este imprevisto.
- Daí se chamarem de imprevisto.
- Tens razão. - Steven depositou um beijo no rosto dela e desceu.

Por uns instantes ficou ali no meio do quarto pensando no que teria acontecido para ele partir assim e deixá-la ali sozinha. Bom, não estava sozinha, estava com a sua mãe. E ali  no meio de nenhures não havia  motivos para ele implicar. O som do carro levou-a à janela. Pedira tanto a Deus que ele lhe desse uns minutos de sossego e ali estavam eles. Não uns minutos, porque Deus é generoso deu-lhe um dia inteiro. Então porque sentia aquele aperto no peito e não alivio? 

- Não sei que fazer com tanto quarto - Lana entrou nesse instante - Se ao menos tivesse netos
- Ai mãe... - Valerie sorriu para a mãe - Um dia destes.
- Um dia...


O resto do dia foi passado a abrir armários e velhos baús. Um deles, cheio de álbuns, prendeu a sua atenção e só o deixou de lado porque a mãe prometera nessa mesma noite "apresentar" a família. 
Havia tanto para fazer no solar, janelas e portas para substituir, o telhado precisava de uma revisão pois, segundo Tim, algumas aves tinham construído lá o ninho desviando algumas telhas. Atoalhados que precisavam de ser lavados, lareiras para limpar, móveis para doar e outros para destruir... a lista parecia não ter fim. Após o jantar foi buscar o baú dos álbuns mas quando regressou á sala a sua mãe adormecera no sofá. A "apresentação" familiar teria que esperar.
Colocou uma manta sobre as pernas da mãe e foi para a biblioteca procurar algo para ler. Percorreu com o olhar a imensidão de capas sem se conseguir decidir pois não conhecia a maioria dos autores. Agarrou a pequena escada com intenção de ver melhor os livros nas prateleiras de cima mas o seu olhar ficou preso num exemplar em cima da mesa junto à janela. Agarrou o livro com cuidado, não tinha pó, sinal que fora colocado ali recentemente. A autora, embora conhecida, era uma estreia para ela. Orgulho e Preconceito de Jane Austen. Naquele momento o luar entrou por entre as vidraças de cima iluminando o espaço. Interpretou aquilo como um sinal e juntou-se à sua mãe junto á lareira. Apesar de nunca ter lido nada da autora depressa percebeu que esta se tornaria numa das suas autoras preferidas. Ficou encantada com a rebeldia de Elizabeth e inicialmente detestou Mr. Darcy pelo orgulho que este emanava mas não precisou ler muito para perceber que não se importava nada de ter um Mr. Darcy na sua vida. O fascínio pelos personagens era tal que era impossível pensar em dormir, naquele momento ela precisava conhecer melhor a família Bennet e ficar a par das peripécias da pobre mãe que só pensava em casar as suas cinco filhas.  

Já passava da meia noite quando a mãe acordou e lhe retirou o livro das mãos obrigando-a, como se ela fosse criança, a ir para a cama. Obedeceu à mãe mas a noite não lhe trouxe o sono, nem o descanso, pretendido. A imprevista ausência de Steven não lhe permitira ter um sono tranquilo,  pelo contrário,  fora agitado e curto. Demasiado curto. A ténue luz que entrava pelo quarto levou-a até à janela e ficou fascinada com as cores que a natureza lhe oferecia naquele novo dia. Temendo perder um minuto daquele fantástico espetáculo saiu de casa em direção ao jardim decidida a apreciar o nascer do dia mas durante o breve passeio até às traseiras da casa a sua atenção prendeu-se num pequeno portão de madeira. Precisava de um bom restauro mas o sua beleza era inegável. Empurrou-o e à sua frente, por entre a densa vegetação, existia um estreito caminho de terra batida, em alguns sítios conseguia ver umas pedras mas a sua maioria estava coberta de terra. Sentia que a natureza a convidava a explorar o local. Não conseguindo conter a curiosidade decidiu seguir em frente e descobrir até onde a levaria aquele caminho. Olhou o relógio consciente que não podia demorar para não assustar a sua mãe e ligou o alarme com a hora de regresso. Respirou fundo, e sentindo-se como uma criança ajeitou o casaco e seguiu atenta a tudo o que a rodeava. Pouco depois à sua frente aparecia um lago de águas calmas. Numa das margens o que restava de um banco de madeira. Teria que perguntar a Tim a história por detrás daquele banco. A sua imaginação dizia-lhe que tinha de existir um motivo para aquele banco no meio das árvores. Pouco depois a vegetação tornou-se mais densa e tinha que afastar alguns ramos para conseguir seguir o caminho que se propusera ao sair de casa. Uns ramos mais "teimosos" ocultavam uma pequena cabana. Naquele momento um som abafado ouviu-se ali perto. Parou de empurrar os ramos e ficou em silêncio tentando perceber de onde vinha o som mas fora em vão. O barulho cessara praticamente ao mesmo tempo que ela parara. Pensando que o som que ouvira era o local a responder à sua intromissão seguiu empurrando os ramos e pouco depois chegara à entrada do que outrora fora um quintal. Olhou-o tentando adivinhar como seria nos tempos em que ali vivia alguém. Imaginava a cerca de madeira pintada de branco, os canteiros de pedra cheios de roseiras e tulipas. O banco de ferro preto com almofadas enormes onde certamente a dona da casa esperava pelo marido enquanto as crianças brincavam na relva bem cuidada. O desgaste da pedra dos degraus era testemunha do vai e vem que ali houvera. As janelas de madeira ainda tinham restos de tinta castanha e para sua surpresa os vidros ainda estavam intactos. Sem conter a curiosidade sobre o seu interior empurrou a porta que cedeu com demasiada facilidade.

- Bolas! Quase que me mata.
- Desculpe. - Valerie olhava atónita para o homem que estava à sua frente esfregando a cabeça. - Pensei que não estivesse ninguém em casa.
- Pois já viu que tem. 

O homem continuava esfregando a cabeça visivelmente aborrecido. Valerie sentiu uma vergonha enorme. Que diria ele a ver a sua casa ser invadida por uma estranha? 

- Desculpe.
- Está a repetir-se.
- Não sei que mais dizer. - Valerie olhou-o envergonhada - Sinto muito ter entrado assim.
- Mas não lamenta ter atirado com uma porta na minha cabeça.
- Claro que sim! Por quem me toma?!
- Não sei. Nunca a vi por aqui.
- Deixe-me ver se está ferido. 
- É enfermeira? 
- Não sabia que era preciso ser. - Valerie levou a mão até á dele e retirou-a deixando a descoberto um vinco enorme em tons avermelhados na testa dele. - Amanhã terá um pequeno hematoma mas não é grave.
- A cabeça não é sua. 
- É sempre assim? Já pedi desculpa. Talvez assim aprenda a não ficar atrás das portas.
- Não estava atrás da porta. Eu ia sair quando fui agredido.

Naquele momento o relógio dela recordou-lhe que estava na hora de regressar. 

- Desculpe mas tenho que ir. E para que conste, não o agredi. Não intencionalmente.
- Se você o diz. 
- Oh... Olhe, sabe que mais? Não tenho paciência para gente arrogante. Principalmente quando ainda não bebi café. Até mais ver.

  
O caminho de regresso pareceu-lhe demasiado curto para o que sentia. Vergonha por se ter deixado levar por um capricho de criança e entrado numa casa sem ser convidada, raiva por aquele homem a considerar capaz de uma agressão. Quem é que ele se julgava?! Não a conhecia de lado nenhum! Então porque supunha algo semelhante? Esperava bem que ele não tivesse comprado a casa mas se assim  fosse que a sua mãe não fizesse amizade com o vizinho. Não se queria cruzar com ele quando a viesse visitar. Era arrogante, exasperante e sem educação! Não largara a mão dela quando ela lhe retirou a dele para lhe ver a testa. A boa educação diz que não se deve segurar a mão de uma senhora demasiado tempo e ele segurara pois ainda sentia o calor da mão dele na sua. 

- Que raiva! - Valerie empurrou o pequeno portão com fúria - Olha que...
- Algum problema?

Valerie olhou para a mãe e forçou um sorriso.

- Não. Estava a falar comigo mesma. 
- É mal de família.- Lana sorriu tristemente - O teu pai falava muitas vezes sozinho, dizia que...
- Gostava de uma conversa inteligente. - Valerie acabou a frase pela mãe - Desculpa ter saído sem te avisar.
- Não és mais criança. E imaginei que estivesses a explorar a zona. Sei como gostas do campo.
- É verdade. - Valerie olhou para o solar - Pensas realmente viver aqui?
- Sim. Já falei com Steven e os advogados dele vão tratar de tudo para colocar a quinta no teu nome, era o que o teu pai...
- Não quero saber disso. Só estou preocupada. Aqui não conheces ninguém.
- Tenho Tim e a esposa dele.
- Por acaso eles sabem que irão trabalhar para ti?
- Detalhes sem importância.- Lana fez um gesto de impaciência com a boca - E, como  estava dizendo, futuramente o filho dele correrá por estes jardins. E quem sabe se não brincará com um dos meus netos.
- Oh mãe. 
- Olha, porque não vamos ver os álbuns até que Steven chegue?! Porque chega hoje, não?
- Acho que sim.  

A mãe "apresentou" a família e contou histórias da sua infância. De como fora feliz ali e de como fugia, pelo mesmo portão que ela usara, para ir até à aldeia comer gelados.  Valerie percebeu que a mãe não falara da sua juventude e que colocara de lado um álbum mesmo sem o abrir, o que aumentou a sua curiosidade. Queria saber o motivo que levava a sua mãe a "fugir" daquele álbum e a esconder as suas aventuras de adolescência mas o olhar da sua mãe mostrava dor, muita dor. Sabia que algo se tinha passado entre eles pois mal o pai teve alta do hospital foram buscá-la e depois dessa visita nunca mais lá voltou. Alguma coisa tinha acontecido para que a família se tivesse afastado mas se a sua mãe não queria falar nisso ela só tinha que respeitar. Afinal ela também tinha os seus segredos. 
O som irritante do telemóvel da sua mãe ecoava pelo salão Valerie olhou para o ecrã. Steven?! Porque não lhe ligara a ela?!

- Podes atender? - Lana começou a colocar os álbuns numa das estantes.
- Estou.
- Finalmente! Não levaste o telemóvel?
- Sim mas... - Valerie sentiu o coração bater apressado. Onde o tinha deixado? 
- Não importa. Não vou conseguir ir hoje e não sei se irei amanhã. A situação é mais complicada do que eu esperava.
- Queres que vá no comboio ou de autocarro?
- Esta tarde irá chegar uma equipa de canalizadores para verificarem se existem risco de ruptura em algum dos canos. - Steven continuou ignorando a pergunta dela - A tua mãe não quer um estranho a mexer nas coisas que eram da tua avó, o que eu compreendo, mas penso que será sensata o suficiente para perceber que certas coisas terão que ser feitas por alguém credenciado e não por Tim ou vocês.
- Isso quer dizer o quê?
- Que terás que ficar aí. A equipa que vai trabalha para mim á algum tempo por isso não se preocupem com nada. A menos que a tua mãe insista em pagar o serviço. Vou enviar alguma roupa para ti, imagino que precisarás de algo mais prático. 
- Não vens ao solar?
- Vou assim que conseguir resolver tudo. 

Steven desligou o telemóvel e ela olhou para a mãe que, olhando um dos álbuns, parecia alheia ao que a rodeava. 

- Mãe? Steven não vem mas pediu a uns amigos para virem ver as canalizações.
- As canalizações estão boas. - Lana falava calmamente e sem olhar para ela - Basta uns dias de uso normal para funcionarem perfeitamente. 
- Estiveram muitos anos sem funcionar.
- Anos?! Mary sempre veio aqui limpar e cuidar da casa. Claro que a idade já não lhe permite fazer as coisas com a mesma facilidade de outros tempos.
- Deves estar a fazer confusão.
- Confusão?! Não estou senil! - Lana bateu com a mão no álbum - Sei bem o que digo. A mãe de Tim continuou a tratar da casa mesmo depois da tua avó falecer.
- Não sabia. Nesse caso temos que lhe pagar estes anos todos de serviço. Vou pedir a Steven que trate disso. 
- Vocês são todos iguais... - Lana levantou-se e ficou a olhar o jardim - Vocês pensam que quando chegamos a uma determinada idade somos incapazes de cuidar da nossa vida. 
- Não é isso, é que...
- Desculpe senhora. - Tim entrou naquele momento - Está uma carrinha junto ao portão.
- Obrigada Tim. - Valerie olhou para a mãe sem entender o silêncio desta principalmente depois da conversa que estavam a ter - Podes ir abrir? São os canalizadores que o meu marido enviou. 
- Com certeza menina. 

Valerie esperou que Tim saísse da sala para retomar a conversa com a mãe mas não teve oportunidade pois a mãe resolvera subir.
A equipa que Steven enviou depressa encheu a casa de homens subindo e descendo fazendo os mais diversos trabalhos. Após falar com Hall, que lhe garantiu não precisar dela, decidiu fazer o mesmo que a sua mãe e subiu para o quarto. Tentou ler mas o barulho dos homens não a deixavam concentrar. Lembrou-se do banco junto ao lago e a ideia de ler ali parecia demasiado apelativa. Sem hesitar agarrou o livro e uma manta e desceu decidida a aproveitar o sol.
Ao chegar ao jardim a sua mãe falava com Tim que lhe mostrava umas folhas enormes. 

- Vou passear um pouco. - Valerie olhou para as folhas onde se via um projeto do jardim.
- Fazes bem. - Lana respondeu-lhe sem deixar de olhar para a folha que Tim segurava.


Valerie empurrou o portão e notou que este se abria com mais facilidade. Sorriu pensando na quantidade de vezes que a sua mãe o teria aberto nas suas fugas e nas inúmeras aventuras que vivera na sua juventude.  Ainda sorria quando chegou ao banco junto ao lago mas desta vez tinha uma ocupante.  Uma mulher de aparência frágil e franzina olhava o lago como que hipnotizada.  Possivelmente ela era a dona daquele banco e naquele momento revivia o que outrora foram tempos felizes. Não querendo ser uma intrusa decidiu regressar ao solar. 

- Arrependeu-se?
- Desculpe?!
- A menina vinha aqui fazer alguma coisa mas por alguma razão resolveu dar meia volta e regressar. 
- Não quero ser intrometida. 
- Aqui na vila ninguém incomoda ninguém. Somos como uma grande família. - A mulher olhou fixamente para ela - A menina é igualzinha à sua avó. Já lhe tinham dito? 

Valerie olhou a mulher com visível assombro. Seria amiga da sua avó?

- Conheceu a minha avó?
- Todos conheciam. - A mulher fez sinal com a mão para que ela se sentasse- Trabalhei para a sua avó muitos anos. E ainda conheci a sua bisavó. 
- É a mãe de Tim?
- Sim. Estou a ver que não me obedeceu, mesmo sem conhecer as pessoas fala sem parar. Aquele rapaz não tem emenda. Mas que se pode esperar?! Quem sai aos seus...
- É parecido com o pai? 

Naquele momento a mulher soltou uma gargalhada. Não se surpreendia, até ela tinha vontade de rir pois as semelhanças eram evidentes mas achou indelicado sugerir que ela estava a falar demais. 

- Com o pai? Ai menina, vê-se que não o conheceu. Se lhe arrancasse duas frases seguidas era muito. O meu Tim é como eu. Em começando a conversar diz o que quer e o que não quer também. - A mulher fez uma pausa e esfregou a mão na saia preta- O meu marido era como o seu avô. Se bem que o seu avô era mais rude e queria tudo ao seu jeito. E ai de quem lhe fizesse frente! Não me interprete mal, o seu avô, apesar de austero, era um homem justo e com um enorme coração. Acho que só o vi sorrir no dia que nasceu a sua mãe. Já a sua avó era o oposto, sempre de sorriso no rosto e uma palavra amiga para todos. A sua avó só perdeu o sorriso quando o marido renegou a própria filha. 
- Não entendi. 
- Outros tempos menina. Bom, acho que vou indo. Já não sou jovem e quero chegar a casa antes da minha nora. 
- Quer que a acompanhe?
- Não é preciso. Vou por um atalho e chego lá rapidamente. A menos que queira descobrir como fugir daqui sem ser vista.
- É possível?
- Se estas árvores falassem... Sabe, às vezes é bom fugir de tudo e de todos, ter um espaço só nosso. Tipo um refúgio. 

Valerie sorriu para aquela mulher que apesar de só a ter visto naquele momento já conquistara o seu coração. Sentindo um pouco de empatia por aquele ser peculiar seguiu-a, nem sempre a seu lado pois o caminho nem sempre o permitia mas atenta a todas as palavras que lhe dizia e tentando ler nas entrelinhas. Quantas vezes ela inventara desculpas para a ausência da sua mãe?


















terça-feira, 13 de agosto de 2024

O Padre II parte






Valerie olhou para o padre e sorriu ligeiramente. A vida dela melhorara ligeiramente desde que começou a frequentar a igreja. Já tinham passado seis meses desde que Steven a levara à igreja pela primeira vez e desde então esperava no carro enquanto ela assistia à missa sem reclamar do tempo que aguardava. Mentalmente agradecia ter aqueles momentos a sós. Fazia-lhe bem à alma estar ali e de certa forma falar com o velho sacerdote sobre trivialidades dava-lhe uma sensação de paz e normalidade. No regresso a casa sentia-se mais leve, mais conformada com o seu destino. Às vezes achava que ele andava menos controlador, menos ciumento. Um dia ele tinha sugerido que fosse comprar um vestido novo para um dos jantares da empresa mas ela ficara desconfiada e temendo uma cena de ciúmes quando chegasse o dia do jantar disse que não precisava de roupa, que tinha vestidos suficientes. Ele soltou uma gargalhada e dissera que ela era a primeira mulher que conhecia que não precisava de comprar roupa. 
Recordava ter olhado para ele tentando perceber se estava a ser irônico mas, se estava, o seu olhar não o demonstrava. 

- Caros irmãos. - A voz do sacerdote trouxe-a à realidade. - Volto a fazer o apelo para a família que neste momento está em apuros financeiros. Agradecemos toda e qualquer ajuda que possam e queiram dar. Na mesa à saída estão vários cartões com os nomes dos bens necessários. Estão à vossa disposição para levar ou consultar. Os bens serão entregues aqui na paroquia de modo a respeitar a privacidade da família. Desde já agradeço a ajuda de todos. 

Os sussurros começaram à medida que as pessoas iam passando e algumas iam retirando alguns cartões. Levantou-se e colocou um no bolso do casaco. Em casa iria ver com mais atenção.

- Vejo que continua a vir sozinha. 
- O meu marido prefere ficar lá fora. 
- Não estou a julgar! - O velho padre sentou-se e fez-lhe sinal para se sentar também - Este frio acaba com os meus ossos. Graças a Deus estou a dias da reforma.
- Vai-se embora?!
- Está na hora. Mas não a vou deixar sozinha, o meu substituto chega amanhã para se ir familiarizando com a paróquia. 
- Vou ter saudades suas.
- Sinto-me lisonjeado. Mas vai gostar do novo pároco. É mais novo, tem outras ideias. Ideias mais modernas. Pode ser que consiga aumentar a congregação.  
- Pensei que a igreja não corresse atrás das "modernices"
- Tudo se moderniza minha querida. Não sei se para bom ou para mau mas é assim. - O padre passou a mão pela batina e bateu com a mão nos joelhos - Não faça esperar em demasia o seu marido. Amanhã cá a espero para lhe dar a conhecer o seu novo confessor. 
- Cá estarei. 

Valerie mordeu o lábio e olhou para o padre que sorriu ligeiramente enquanto lhe abria a porta.

- Fé minha querida, ela move montanhas. 

Steven saiu do carro quando eles saíram da igreja. Valerie caminhou em direção ao marido mantendo as mãos nos bolsos e brincando com o cartão. 

- Não tarda está a chover. - Valerie entrou no carro perguntando-se se seria um bom momento para abordar o assunto com ele.
- Assim parece. Felizmente não precisamos sair de casa hoje.
- Graças a Deus nós temos casa.
- Esse comentário vem a respeito de quê?!
- De nada. Ás vezes não damos valor a que temos. 
- Sim... mas tenho a sensação que me estás a esconder algo.

Valerie tirou o cartão do bolso e ficou a olhar para o mesmo fixamente.

- Não estou a esconder nada, simplesmente acho que não te interessa.
- Porque não me contas e me deixas decidir?
- Hoje fizeram um apelo. - Valerie mordeu o lábio antes de continuar. - Uma família precisa de ajuda.
- Que tipo de ajuda?
- Financeira. Mas pelo que percebi aceitam qualquer dos produtos deste cartão. 
- Maldita crise! Têm crianças?
- A julgar pelo pedido de fraldas penso que sim. 
- Amanhã entregas um cartão da empresa ao padre e pedes para entregar ao pai da criança.
- Vais ajudar?
- Achavas que não?! - Steven olhou-a por uns segundos - É essa a ideia que tens de mim?! Deus do céu! Eu sei que... - Steven calou-se por uns segundos - É assim que me vês? 

Valerie olhou para ele tentando perceber se estava genuinamente ofendido. Que queria que pensasse?! Nunca soube o que esperar dele e os últimos meses vieram confirmar que ele era inconstante. 

- É que não...
- Não interessa. - Steven interrompeu-a - Faço questão de ajudar. Já diz o proverbio chinês que se deres um peixe ao homem ele se alimentará por um dia mas se o ensinares a pescar ele se alimentará por toda a vida.
- Uma grande verdade.

Durante o regresso a casa o tema de conversa foi a crise que o país atravessava. Por uns momentos parecia terem voltado ao tempo de namoro e deu a sua opinião como não fazia à imenso tempo. 

Assim que chegou a casa, com aprovação do marido, fez uma lista de coisas que iria comprar no dia seguinte e Steven colocou alguns cartões junto às chaves do carro antes de se concentrar nas notícias. Um misto de emoções reinava no seu peito quando se deitou. Tentou ler mas a sua mente tentava decifrar aquele homem que estava na sala. Aquele não era o homem com que tinha vivido os últimos anos. Pensando bem não importava quem era o novo Steven, o importante era poder ajudar aquela família. Com esse pensamento adormeceu com um sorriso nos lábios.

Chovia copiosamente quando entraram no centro comercial para fazer as compras. Olhou para o marido que empurrava o carrinho pelos corredores do supermercado colocando artigos dentro do mesmo com toda a segurança do mundo como se fizesse aquilo com regularidade e percebeu que nunca tinham ido juntos ao supermercado. 

- Acho que exagerámos. - Valerie olhou para ele enquanto colocava os produtos no tapete da caixa.
- Não te preocupes.

Valerie olhava as compras sentindo-se feliz por aliviar as preocupações daquela família por algum tempo. E esse pensamento acompanhou-a durante a homilia dessa manhã. Tinha a certeza que nada podia tirar-lhe aquele sentimento de bem estar. 

- Hoje o seu olhar brilha. - O velho sacerdote sentou-se no banco que geralmente ocupavam no final da igreja. - Gosto de a ver assim. 
- Trouxemos uma pequena ajuda para a família. - Valerie tirou o cartão da empresa do bolso - O meu marido pediu para fazer chegar o cartão ao pai pedindo-lhe que vá à empresa. 
- Isso é maravilhoso. 
- Sr. Padre! - Uma senhora de cabelo grisalho e rosto afogueado entrou na igreja - Venha ver. Rápido! Não vai acreditar!
- Oh mulher de Deus tenha calma. - O velho padre levantou a mão em direção ao altar enquanto se levantava. - Vou ver o que se passa lá fora. Entretanto deixo-a com o padre August. August, Valerie. O membro mais novo do nosso rebanho.

Valerie olhou para o homem que estava à sua frente. Devia ter uns trinta anos, olhos castanhos escuros, cabelo preto, bem constituído fisicamente e bastante alto.

- Valerie... ouvi falar muito de si. - August sorriu - Espero merecer a mesma confiança que depositou no meu antecessor. Assim com espero que continue a vir à missa frequentemente.
- Certamente virei. 

Valerie sorriu e encaminhou-se para a porta seguida por August. O seu coração bateu agitado ao pensar no que diria o marido ao ver o padre novo. Mas este parecia demasiado ocupado em colocar os sacos na carrinha da paróquia. Steven sorriu para ela, tinha o rosto rosado e o olhar brilhava de satisfação. O coração dela tranquilizou-se ao ver como Steven parecia não dar importância ao novo padre. Realmente ele estava mudado e ela só podia agradecer por isso. Finalmente sentia que uma luz brilhava no fundo do túnel que era o seu casamento. 



- O seu marido continua a esperar lá fora? 

 O padre August, assim como o seu antecessor, tinha sempre uns minutos para falar com ela. Inicialmente sentiu um pouco de vergonha de falar dos seus problemas com alguém tão jovem mas depois percebeu que August não a julgava, aliás, chegara a comentar que conhecia muitos casamentos parecidos, casamentos que duraram apenas por vergonha do que os demais iriam dizer.  

- Sim. E eu agradeço por estes minutos a sós.
- Imagino. - August colocou a mão sobre a dela - Sei que o seu casamento não tem sido fácil mas as coisas melhoraram. A intenção de se divorciar já não se coloca?
- Sinceramente não sei. - Valerie retirou a mão e rodou a aliança no dedo - Tenho medo, não vou negar. Neste momento está mais calmo mas não sei se posso respirar de alivio. Um alivio definitivo, entende? Acho que nunca irei deixar de sentir esta pressão no peito sempre que ele se atrasa ou está mais nervoso.
- É normal mas tenho a certeza que quando casou, casou por amor. Esse amor está aí guardado esperando que o deixe sair. O amor verdadeiro não desaparece à primeira dificuldade. Quer uma sugestão?  - August não esperou que ela respondesse - Porque não faz uma surpresa ao seu marido?
- Surpresa?! Como assim?
- Às vezes basta um gesto simples como um convite inesperado para um café, um almoço para que tudo volte ao que era. Porque não aparece inesperadamente no escritório? 
- O problema é que o meu casamento nunca foi esse tipo de casamento.
- Mas não diz que o seu marido está diferente?! Então porque não tentar? Não tem nada a perder.
- Tem razão. 

Valerie saiu da igreja sentindo a esperança de uma vida mais calma renascer dentro dela. Realmente não tinha nada a perder. 

- Não te aborreces de esperar?
- Hoje não esperei. - Steven embrenhou-se no trânsito - Aproveitei para beber um café e confirmar umas reuniões. Não faz muito sentido estar ali olhando para a porta numa praça deserta. 
- Ah... Pois...Está muito frio.
- Está mesmo. 

Aquela revelação deixou-a sem saber que pensar. Sempre imaginara que ele ficava ali fora como um cão de guarda. Saber que o marido lhe dava um pouco de liberdade reforçava a ideia que estava realmente mudado.

Steven, apesar de algumas noites chegar mais tarde a casa, parecia mais descontraído. Semanalmente levava-lhe uma rosa ou uma tulipa e continuava a levá-la à igreja todos os dias. A presença dos amigos deles fora reduzida a um jantar ocasionalmente assim como as saídas com Laís. Talvez fosse isso que o casamento deles precisava, uns ajustes nas rotinas de cada um. Ele reduzira os encontros com os amigos e ela as saídas com Laís. Ele aumentara as noites do escritório e ela começara a ir à missa. Foram pequenos ajustes mas que fizeram a diferença. 
À noite dava por si a olhar para ele e a pensar que era fácil apaixonar-se por ele. Percebeu que não fugia para o quarto depois de jantar preferindo ficar na sala a ler enquanto ele via televisão. E deu por si a gostar de ouvir a chave na porta quando chegava o fim do dia. 

- Não consigo perceber o fascínio por esses livros enormes.
- Não são assim tão grandes.
- Não?! - Steven puxou o livro das mãos dela - 645 páginas... pouca coisa.
- Eu gosto.
- Já tinha percebido. - Steven atendeu o telemóvel quando este tocou - Sim?

Valerie ficou a olhar o marido por uns instantes enquanto este ia soletrando palavras isoladas. Voltou a concentrar-se no livro mas por pouco tempo.
 
 - Preciso voltar ao escritório. - Steven agarrou as chaves do carro e voltou-se para Valerie - Não demoro mas não precisas esperar por mim.
- Está bem.

Valerie voltou à leitura e quando terminou o capitulo que estava a ler percebeu que tinha passado quase uma hora sem que Steven tivesse regressado. Há muito tempo que Steven não saía de casa depois de jantar. Temendo o regresso dele deitou-se inquieta mas, quando o sol entrou no quarto acordando-a, e percebeu que Steven dormia a seu lado, ficou admirada por ter dormido profundamente. Podia não ter ouvido quando ele entrou em casa mas quando se deitou a seu lado deveria ter dado por isso! Estava tão tranquila quanto ao relacionamento deles que já adormecia sem preocupações?! Independentemente do motivo ela agradecia por a relação deles estar a navegar em águas mais calmas. 
Tentando não o acordar foi tomar duche e preparar o pequeno almoço. 


- Bom dia. - Steven entrou na cozinha ainda de pijama. 
- Bom dia. Não vais ao escritório? 
- Vou um pouco mais tarde. - Steven dirigiu-se a ela e depositou um beijo na testa dela. - Estava a pensar em fazer algo diferente.
- Queres dizer não ir à missa?
- Sim... Afinal hoje é um dia especial.
- É verdade. - Valerie tinha esquecido que faziam anos de casados - Mais um.
- É mesmo. Mais um. 

Valerie olhou para ele fixamente. Tinha a sensação que ele ia dizer algo mais mas Steven apenas sorriu e dirigiu-se ao quarto. 
Steven saiu para o trabalho pouco depois e ela ficou a pensar em como ele estava estranho essa manhã. A meio da manhã ligou a avisar que não ia almoçar, que tinham reserva para jantar mas que vestisse algo prático.
Algo prático... o que ele considerava algo prático?! Um fato de treino?! Um vestido simples mas elegante?! Uns jeans?! Sem saber o que ele queria dizer levou a tarde a experimentar roupa de modo a se sentir "prática" mas sem quebrar as regras dele. Finalmente optou por um clássico. Uns jeans pretos, uma camisa branca e um blazer preto. As suas botas pretas, uns brincos e um colar comprido dariam ao conjunto um ar elegante. E se tinha algumas dúvidas as mesmas desapareceram quando se viu ao espelho. As calças não marcavam a sua silhueta em demasia e a camisa dava o toque elegante que ela queria transmitir. 

- Não era isso que tinha em mente mas tenho que admitir que te fica bem.
- Se preferes...
- Não. Estás linda. - Steven sorriu - Hoje não dormimos em casa.
- Onde vamos?
- Logo vês.
 
Aquela resposta direta, sem qualquer conversa que a antecedesse, disparou uma espécie de alarme na sua cabeça. Teria feito bem em decidir o que ia vestir sem o consultar?! Geralmente ele é que escolhia o que ela deveria usar sempre que socializavam. Os seus temores aumentavam à medida que os sons que vinham da casa de banho se sucediam antecipando o momento em que ele se juntava a ela. 
Aguardou a reação dele ao sair do chuveiro mas apenas recebeu elogios dele, o que originou ainda mais desconfiança. Sentindo o coração bater apressado, viu-o abrir o roupeiro e retirar umas calças e uma camisa que vestiu num ápice. Colocou um cinto e os sapatos e só depois escolheu o casaco. Abriu uma porta e retirou uma mala pequena que colocou em cima da cama. 

- O teu pijama?
- Não dormirmos em casa!?
- Pensei que o tinha mencionado.
- Sim.
- Então apanha um pijama. 

Olhou-o enquanto abria uma gaveta e agarrou o primeiro pijama que viu. Lutando contra o tremor que sentia interiormente meteu-o na mala e fechou-a encarando-o.

- Pronto. 
- Então vamos.

As nuvens não deixavam ver o sol esconder-se no horizonte à medida que eles se embrenhavam no trânsito. Ela não conseguia deixar de analisar a situação... Apesar da forma como a tratava nesse dia Steven fazia questão que fossem jantar e depois beber café numa esplanada. Não entendia porque ele insistia em festejar pois estavam longe de ser um casal normal. Ele, devido aos ciúmes, não confiava nela e ela, por esses mesmos ciúmes, tinha medo dele. Geralmente jantavam em silêncio e ela pedia mentalmente a Deus que ele não fizesse uma cena por alguma insignificância. 
 Mas naquela noite não sabia que pensar daquele secretismo todo. Precisava pensar no quão ele estava mudado, porque estava. Os últimos meses eram provam disso e segundo o padre August, era nisso que se tinha de focar. Tentou pensar no quão amável ele tinha sido, na "liberdade" que lhe dera... Estavam a recomeçar! Queria acreditar nisso. Aliás, para bem da sua sanidade mental, ela precisava acreditar que assim era.
Mas na sua mente surgiam nova pergunta...se estavam a recomeçar, a percorrer um novo caminho, sem tanto espinho, porque não conseguia desfrutar daqueles momentos? Ela sabia porquê. Não era fácil pensar apenas no dia de hoje quando ela sabia que ele podia explodir a qualquer momento. Ela sabia bem que ele era mestre em colocar uma máscara e só a retirar quando lhe convinha. Existia tanta nuvem cinzenta e negra na vida deles em comum como as que corriam pelo céu nublado naquele fim de tarde. A história deles era de temor, de sentimentos e palavras reprimidas. Não, ela não conseguia confiar a cem por cento no novo Steven.  
Esses pensamentos acompanharam-na durante todo o jantar e, apesar da conversa fácil dele, não conseguiu aproveitar a noite e muito menos o café numa esplanada junto ao cais. Era como se o passar do tempo lhe recordasse que estava mais perto de ficar a sós com ele. Onde?! Só Deus sabia.

- Estás muito calada.
- Ainda tento adivinhar onde vamos. - Valerie olhou diretamente para ele - Não posso saber?
- Se te dissesse não seria surpresa. 
- Surpresa... Não gosto de surpresas!
- Não?! Se bem me lembro gostavas imenso.
- As pessoas mudam.
- E ainda bem que o fazem. Já imaginaste se...

 Deixou de o ouvir quando percebeu que tinham deixado a cidade. Na sua mente surgiu uma cabana no meio de nenhures, sem qualquer casa por perto. E certamente sem rede móvel ou acesso à civilização. Oh, Deus! Para onde ele a levava?! Seria ela mais uma da vitimas de violência doméstica?! Teria ele escondido uma arma?! Ou teria organizado um plano para parecer um acidente?! Seria essa a urgência da noite anterior?! Organizar um plano para se desfazer dela ou, na melhor da hipóteses pois continuaria viva, dar-lhe uma lição?! Nunca imaginou que faria parte da enorme lista de mulheres que sofrem às mãos dos companheiros.

- Valerie?! 
- Ah?!
- Estava a perguntar se tens frio. Estás a tremer.

Estava?! Olhou para as suas mãos e realmente tremiam. Tal como as suas pernas. 

- Sim, um pouco. - Mentiu evitando o olhar dele. Era melhor concordar com ele.
- No banco de trás está uma manta. Tenta dormir um pouco, ainda vamos demorar.
- Está bem.

Agarrou a manta mecanicamente e enrolou-se nela fechando os olhos. A sua intenção era fingir que dormia mas percebeu que tinha adormecido realmente quando uma leve dor na cabeça a acordou. O seu primeiro pensamento fora que ele a estava a agredir mas uma reclamação contida fê-la perceber que ele ainda conduzia.

- Desculpa, não imaginei que a estrada tivesse tantos buracos.
- Onde estamos?
- A chegar. 

Valerie olhou em redor tentando perceber onde estava. A luz dos faróis revelavam um caminho de terra batida ladeado por árvores bastante altas. Tinha a sensação de conhecer o lugar mas na escuridão da noite não conseguia perceber onde estava. A visão de um portão alto de ferro semiaberto foi como um choque elétrico que a tirou da torpeza em que se encontrava . Estavam no solar! 

- O solar...
- Sim. Falei com a tua mãe e ela disse que fazia muito tempo que não vinhas cá, que ela estava a pensar em regressar ... - Steven fez uma pausa - Sabes como é a tua mãe. Resumindo. Achei boa ideia virmos até cá ver como estão as coisas e aliviar a tua mãe dessa tarefa. Que dizes?
- Nem sei que diga. Tens noção que aqui não existem as comodidades do apartamento?
- Uma noite não faz mal a ninguém. E depois, nem sempre dormi numa boa cama.
- Não?
- Não. 

Steven saiu do carro dando a conversa por terminada. Valerie ficou a olhar para ele enquanto ele empurrou o portão com alguma facilidade. Nunca poderia imaginar que o seu destino seria a casa da sua avó. Tinha ido ali uma ou duas vezes. Não se recordava muito bem da avó. Aliás, não se recordava da família da sua mãe.

- A tua mãe chega amanhã. - Steven entrou no carro para sair logo a seguir - Negou-se a vir conosco, usando as palavras dela " não quero interromper nada"
- Típico dela.
- Nem que estivéssemos em lua de mel! 

Steven soltou uma gargalhada e ela sentiu as faces ficarem vermelhas. Ele tinha o poder de a fazer sentir envergonhada com coisas tão simples e básicas como a relação carnal entre um homem e uma mulher. 


- A tua mãe ligou enquanto dormias, diz que chega antes de almoço. - Steven agarrou a mala que ela tinha na mão e dirigiu-se à entrada - Entramos?
- A casa deve estar um gelo.

Mas para sua surpresa a casa tinha uma temperatura amena e no ar um leve aroma a pinho. Olhou em redor, num canto uma cadeira tinha uma boa quantidade panos brancos dobrados e percebia-se que alguém limpara aquela divisão. A lareira estava acessa e na frente desta um enorme sofá, que já tinha visto melhores dias, e uma pequena mesa de apoio.

- Acho que a tua mãe falou com alguém. 

Valerie olhou na direção dele. Estava junto a uma mesa e segurava um papel.

- Queres dizer que está alguém cá em casa?
- Não me parece. 

Valerie agarrou o papel que ele lhe estendia e leu-o rapidamente. 


" Boa noite.
Cara senhora Dow. Conforme nos foi pedido deixámos a lareira acessa e dois quartos limpos e prontos a usar. Pedimos desculpas por não esperar mais tempo mas temos um filho pequeno e não nos foi possível aguardar mais tempo.
Tem o meu número caso seja preciso algo mais não hesite em ligar. 
Na cozinha há café fresco e um bolo que a minha esposa fez.

Desejo uma boa noite
Atenciosamente
Tim "


- Engraçado. - Steven sentou-se no sofá olhando em redor - Lembro-me de ela ter falado, ainda que vagamente, no solar mas não tinha ficado com a ideia que era tão grande. Parece um castelo.
- Já se passaram muitos anos, talvez quase vinte, desde a última vez que cá estive mas de uma coisa tenho a certeza. Não é um castelo. - Valerie baixou o olhar ao perceber que ele sorria - Bom, talvez se pareça um pouco. É enorme, tem portões de ferro, está rodeado por uma mata... 
- Deve ser fantástico viver aqui.
- Sim. Se bem que na idade da minha mãe não sei. 
- Hoje em dia apesar das distâncias está tudo relativamente perto. E ela terá as suas razões.
- Fizeram café e bolo para nós. Queres?
- Seria de má educação não aceitar.


Valerie dirigiu-se à cozinha e para sua surpresa a máquina do café ainda coava o café. Sorriu ao recordar que a sua mãe também fazia café naquelas cafeteiras. Abriu os armários até encontrar uns pratos e serviu uma fatia de bolo para cada um e uma boa chávena de café .


- Aqui está. Não deve ser do teu agrado. Este café tende a ser mais fraco.
- A esta hora não convém nada de muito forte.

Enquanto bebiam o café a conversa fluiu naturalmente e, após ele falar das viagens que fez durante a sua infância e juventude, ela deu por si a partilhar também algumas partes da sua infância. Não se comparavam com as viagens dele ao redor do mundo mas ele parecia realmente interessado nas pequenas aventuras dela. Contrariamente ao que pensou o resto da noite foi bastante agradável e deu por si a pensar se aquele seria o verdadeiro Steven.