segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O Padre III parte



Acordou com o sol a bater-lhe no rosto sentindo uma tranquilidade que há muito não sentia. O silêncio que reinava no quarto dizia-lhe que Steven já tinha descido.  Sorriu ao recordar a noite anterior e sentiu-se envergonhada por o temer. A conversa entre eles fluíra de tal forma que só perceberam o adiantado da noite quando a lareira começou a enfraquecer. Steven fez ao careta ao ver o cesto estava vazio. Segundo ele, sinal que estava na hora de dormir. Lembrava de ter sorrido e aceitado a mão dele para se levantar do tapete pois o sofá era demasiado incomodo. 
Um som que ela não conseguiu distinguir levou-a a ir até à janela. Steven tentava empurrar um velho carro de mão cuja roda pedia a gritos um pneu novo. Entre o chão húmido pelo orvalho e a falta de roda a cena tinha algo de cómico. 
Decidida a desfrutar daquela luta desigual deixou-se ficar à janela mas pouco depois Steven regressou a casa dando o "espetáculo" por terminado. Nesse instante um pássaro voou junto ao vidro e como que hipnotizada seguiu-o com o olhar até ele desaparecer por entre as árvores.  Como gostaria de ser livre como ele...
Temendo chorar ou deixar-se levar por pensamentos negativos vestiu-se e desceu. 

- Droga! Mas como raio funcionas?!

Steven mexia na cafeteira que fazendo um ruído estranho lhe dava uma água "suja" por pó de café.

- Meteste o café no filtro?
- Filtro?! É suposto?
- Deixa que eu faço. - Valerie procurou os filtros sob o olhar atento dele- A minha mãe também fazia café numa máquina destas. 
- Então é tradição de família.
- Não sei. Não conheço mais ninguém da família. 
- Estranho. 
- Porquê?
- Por acaso tu achas normal não conheceres a tua família? - Steven olhou-a uns instantes e depois continuou - Pois...  Começo a achar que as minhas conversas com a tua mãe têm duplo sentido.
- Se fossem só as tuas. - Valerie ligou a máquina e olhou para ele - Às vezes também tenho essa sensação. De que não está a dizer exatamente o que quer.
- Ou que quer esconder algo.
- Isso. - Valerie olhou para o liquido negro que enchia a chaleira e agarrou uma caneca - A minha mãe é uma mulher muito misteriosa. Principalmente no que diz respeito ao seu lado da família. Por exemplo, eu só estive aqui duas ou três vezes. 
- Eu passava a vida em casa dos meus avós- Steven agarrou a caneca que ela lhe estendia - Finalmente um café. Vamos aproveitar este sol e tomar o pequeno almoço lá fora?
- Boa ideia.

 Sentaram-se nos degraus da varanda e, para sua surpresa não retomaram a conversa,  ficaram apenas olhando o jardim que, apesar de limpo, precisava de cuidados específicos. Algum tempo depois o barulho de um carro fê-los levantar acreditando que seria a sua mãe mas, em vez dela, saiu do carro um homem forte que acenou na direção deles.  

- Conheces? - Steven olhou para ela e depois para o homem que estava junto ao enorme portão de ferro preto.
- Não...

Institivamente ela segurou a mão dele ao mesmo tempo que caminhavam na direção deste.

- Bom dia. - O homem retirou o gorro - Peço desculpa por vir cedo mas por aqui acordamos primeiro que o sol. - Ele sorriu abertamente para Valerie - A minha mãe não se enganou, a menina é igualzinha à sua avó. - Nesse instante o seu rosto ficou ligeiramente avermelhado - Desculpem os meus modos. Sou Tim, tagarela por natureza, a minha mãe era governanta no solar e pediu para os receber. Peço desculpa por não estarmos aqui quando chegaram mas já era tarde para o nosso filho.
- Não se preocupe. Só temos a agradecer a vossa disponibilidade - Steven abriu o portão . - Não sabia que ainda havia trabalhadores no solar.
- Na realidade não somos mas sabe como são as localidades pequenas. O sentido do dever fala mais alto. - Tim colocou o gorro novamente - Espero que a casa estivesse minimamente confortável. E que tenham gostado do bolo. É o favorito do meu filho. 
- Estava muito bom. - Valerie olhou para o carro tentando perceber se estava sozinho - Não quer entrar?
- A sua mãe já chegou?
- Ainda não.
- Nesse caso agradeço mas vou começar por ver o que se pode fazer no barracão e nos estábulos.
- Não entendi. - Valerie olhou para Steven que se mantinha em silêncio - Vai ficar aqui?
- A sua mãe pediu ajuda à minha mãe que por sua vez me pediu a mim. E como sabe nunca se nega um pedido a uma mãe. Não precisa de me acompanhar, conheço o solar como a palma da minha mão. 

Sem aguardar resposta Tim entrou no carro e fê-lo atravessar o enorme portão. Para surpresa deles, após retirar um bloco e uma caneta do carro, encaminhou-se para as traseiras do solar desaparecendo entre os enormes arbustos.

- Todo um personagem.
- Mesmo.

Valerie manteve o olhar no caminho que Tim tomara sem qualquer cerimónia. 

- A minha mãe não te falou nele?
- Não. Imagino que, como não nos recebeu ontem, se tenha sentido na obrigação de vir.
- Talvez. 
- Acho melhor seguir o exemplo de Tim e iniciar a vistoria antes que a tua mãe chegue.
- Até porque em algum momento teremos que  o fazer.

Mas, ao invés de seguir Steven até casa, ela ficou a admirar a enorme casa que se erguia diante dela.
A imponente construção estava praticamente coberta pela hera que apenas deixava ver uma ou outra pedra da construção e as janelas de madeira. Ao aproximar-se da entrada fechou os olhos e recordou a primeira vez que entrou ali. 

Iria entrar esse ano para a escola e a sua mãe deixara-a no jardim aguardando. Recordava que estava assustada pelo tamanho da casa e por esta não ser pintada como a sua mas depressa esqueceu o medo quando um cachorro correu na sua direção para lhe lamber as mãos. Sorriu ao recordar o velho pastor alemão.

- Apesar de teres vindo poucas vezes parece que foste feliz aqui. 
- Não me recordo muito bem mas acho que sim. 

Valerie não pode deixar de notar no ar  descontraído dele. Sentiu-se algo idiota por se ter preocupado demasiado com aquele fim-de-semana. 

- Bom, vamos mas é fazer algo. - Steven arregaçou as mangas. 
- Vou abrir as janelas a casa precisa de luz natural. 
- Eu vou verificar as torneiras e as tomadas.


Após abrir as janelas dirigiu-se à cozinha. Desligou a máquina do café e olhou em redor, a luz do dia revelava toda a grandeza e elegância do espaço. Cada móvel parecia desenhado para facilitar as tarefas ali realizadas. Os armários, de madeira castanha, ocupavam praticamente toda a altura das paredes, as portas tinham uns puxadores de ferro que lhe conferia um ar campestre. No centro uma mesa enorme com duas gavetas e uma base por baixo cheia de cestos de vime. Abriu os armários um a um e ficou admirada com a organização destes. Certamente obra da mulher de Tim. Nem queria imaginar a trabalheira que a pobre mulher tivera. Trabalho em vão pois teriam que retirar tudo e verificar o que ainda se podiam usar, passado tantos anos certamente haveria muita coisa que atualmente não tinha utilidade mas isso competia à sua mãe decidir. Ao abrir a última porta ficou atónita com tanta caneca mas o seu olhar prendeu-se numa em específico. Uma caneca branca com um cavalo em relevo.
Aquela simples peça de loiça fê-la recordar a última vez que ali tinha estado. Tinha onze anos e a visita  acontecera durante o verão.
Aquela seria diferente que, contrariamente às anteriores que eram escassas e curtas, aquela seria uma visita mais demorada pois o seu pai estava internado devido a um coice de cavalo e a sua mãe decidiu que o melhor era ficar uns dias com a avó até que o pai estivesse recuperado. Lembrava-se da enorme curiosidade em explorar a mansão e arredores. Cada divisão era uma aventura para ela e quando se juntava à avó as perguntas sucediam umas às outras sem dar descanso á pobre mulher. Apenas quando descobriu a biblioteca foi parca nas perguntas. Nesse dia só lhe ocorreram duas perguntas: São todos seus? E posso ler? A avó mal teve tempo de responder pois saiu disparada em direção á biblioteca e levou três dias a percorrer as estantes. Depois a sua atenção foi captada pelos enormes quadros pintados à mão, que decoravam o corredor do andar de cima onde estavam os quartos. Também eles vitimas da sua curiosidade e quando a avó lhe disse que a maioria eram familiares tivera a sensação que afinal não estava tão sozinha como pensava. Depois desse dia, sempre que saía do quarto ao acordar, percorria o corredor dando os bons dias a todos. Sorriu ao recordar a vénia que fazia ao tetravó que segundo a sua avó era duque...

- Um milhão pelo motivo desse sorriso.
- Ah?! - Valerie olhou para o marido sem entender.
- Estavas a sorrir e a olhar para o infinito como se estivesses noutro lado. 
- Estava a recordar a... - O som do telemóvel encheu o ar  e percebeu que Steven estava relutante em atender. - Não vais atender? Pode ser importante.
- Pois...

Valerie seguiu o marido com o olhar enquanto este se afastava ao mesmo tempo que atendia a chamada. Devia ser do escritório, ele não gostava de falar de negócios diante dela. O pouco que sabia era o que ouvia nos jantares de natal e fim de ano da empresa. Steven ficara à frente da empresa de exportações quando o pai dele decidiu aproveitar os anos que lhe restavam a conhecer o mundo. A única coisa que ela sabia concretamente era que o marido era bom no que fazia pois segundo o gerente do banco a conta aumentava substancialmente.  Tudo graças ao trabalho e astúcia dele. As exportações tinham aumentado e Steven investiu parte dos rendimentos em imóveis o que aumentou os rendimentos  mas também a sua carga laboral. Sabia que ele procurara alguém para o ajudar mas a última  vez  que  o ouvira falar  nisso ainda tinha conseguido. Se tivessem um casamento normal podiam falar dessas coisas abertamente. 

- Já me tinha esquecido o incómodas que são estas viagens. - Lana colocou uma pequena mala no chão e estendeu os braços na direção da filha - Espero que vocês tenham dormido bem.
- Sim, muito bem. - Valerie depositou um beijo no rosto da mãe e abraçou-a - Porque não veio conosco?
- Para atrapalhar?! - Lana afastou-se da filha e olhou o enorme salão - Steven queria contratar uma empresa para recuperar e limpar a casa mas neguei-me. 
- Porquê?! - Valerie olhou a mãe sem saber se estava mais admirada por esta negar a oferta de Steven se por este se ter oferecido.
- Olha... porquê... porque não preciso de esmolas.
- Não era uma esmola. - Steven entrou nesse momento - Mas respeito a sua decisão. - Steven voltou-se para Valerie - Podemos falar em privado?
- Claro.

Valerie segui-o em silêncio até ao quarto ainda meio atónita com a recusa da sua mãe. Sempre dissera que toda a ajuda é bem vinda. Porque se negava a aceitar a ajuda dele?

- Tenho que voltar à cidade. - Steven agarrou a mala e colocou as poucas coisas que tinha trazido.
- Algum problema?
- Nada que não se resolva. - Steven fechou a mala e olhou para ela - Não há necessidade de ires, são coisas da empresa e penso voltar amanhã mesmo. 
- Se assim queres. 
- Desculpa sair assim mas tenho mesmo que ir. A minha ideia, já que a tua mãe recusou a minha ajuda financeira, era ajudar no máximo que pudesse durante o fim de semana, mas não estava a contar com este imprevisto.
- Daí se chamarem de imprevisto.
- Tens razão. - Steven depositou um beijo no rosto dela e desceu.

Por uns instantes ficou ali no meio do quarto pensando no que teria acontecido para ele partir assim e deixá-la ali sozinha. Bom, não estava sozinha, estava com a sua mãe. E ali  no meio de nenhures não havia  motivos para ele implicar. O som do carro levou-a à janela. Pedira tanto a Deus que ele lhe desse uns minutos de sossego e ali estavam eles. Não uns minutos, porque Deus é generoso deu-lhe um dia inteiro. Então porque sentia aquele aperto no peito e não alivio? 

- Não sei que fazer com tanto quarto - Lana entrou nesse instante - Se ao menos tivesse netos
- Ai mãe... - Valerie sorriu para a mãe - Um dia destes.
- Um dia...


O resto do dia foi passado a abrir armários e velhos baús. Um deles, cheio de álbuns, prendeu a sua atenção e só o deixou de lado porque a mãe prometera nessa mesma noite "apresentar" a família. 
Havia tanto para fazer no solar, janelas e portas para substituir, o telhado precisava de uma revisão pois, segundo Tim, algumas aves tinham construído lá o ninho desviando algumas telhas. Atoalhados que precisavam de ser lavados, lareiras para limpar, móveis para doar e outros para destruir... a lista parecia não ter fim. Após o jantar foi buscar o baú dos álbuns mas quando regressou á sala a sua mãe adormecera no sofá. A "apresentação" familiar teria que esperar.
Colocou uma manta sobre as pernas da mãe e foi para a biblioteca procurar algo para ler. Percorreu com o olhar a imensidão de capas sem se conseguir decidir pois não conhecia a maioria dos autores. Agarrou a pequena escada com intenção de ver melhor os livros nas prateleiras de cima mas o seu olhar ficou preso num exemplar em cima da mesa junto à janela. Agarrou o livro com cuidado, não tinha pó, sinal que fora colocado ali recentemente. A autora, embora conhecida, era uma estreia para ela. Orgulho e Preconceito de Jane Austen. Naquele momento o luar entrou por entre as vidraças de cima iluminando o espaço. Interpretou aquilo como um sinal e juntou-se à sua mãe junto á lareira. Apesar de nunca ter lido nada da autora depressa percebeu que esta se tornaria numa das suas autoras preferidas. Ficou encantada com a rebeldia de Elizabeth e inicialmente detestou Mr. Darcy pelo orgulho que este emanava mas não precisou ler muito para perceber que não se importava nada de ter um Mr. Darcy na sua vida. O fascínio pelos personagens era tal que era impossível pensar em dormir, naquele momento ela precisava conhecer melhor a família Bennet e ficar a par das peripécias da pobre mãe que só pensava em casar as suas cinco filhas.  

Já passava da meia noite quando a mãe acordou e lhe retirou o livro das mãos obrigando-a, como se ela fosse criança, a ir para a cama. Obedeceu à mãe mas a noite não lhe trouxe o sono, nem o descanso, pretendido. A imprevista ausência de Steven não lhe permitira ter um sono tranquilo,  pelo contrário,  fora agitado e curto. Demasiado curto. A ténue luz que entrava pelo quarto levou-a até à janela e ficou fascinada com as cores que a natureza lhe oferecia naquele novo dia. Temendo perder um minuto daquele fantástico espetáculo saiu de casa em direção ao jardim decidida a apreciar o nascer do dia mas durante o breve passeio até às traseiras da casa a sua atenção prendeu-se num pequeno portão de madeira. Precisava de um bom restauro mas o sua beleza era inegável. Empurrou-o e à sua frente, por entre a densa vegetação, existia um estreito caminho de terra batida, em alguns sítios conseguia ver umas pedras mas a sua maioria estava coberta de terra. Sentia que a natureza a convidava a explorar o local. Não conseguindo conter a curiosidade decidiu seguir em frente e descobrir até onde a levaria aquele caminho. Olhou o relógio consciente que não podia demorar para não assustar a sua mãe e ligou o alarme com a hora de regresso. Respirou fundo, e sentindo-se como uma criança ajeitou o casaco e seguiu atenta a tudo o que a rodeava. Pouco depois à sua frente aparecia um lago de águas calmas. Numa das margens o que restava de um banco de madeira. Teria que perguntar a Tim a história por detrás daquele banco. A sua imaginação dizia-lhe que tinha de existir um motivo para aquele banco no meio das árvores. Pouco depois a vegetação tornou-se mais densa e tinha que afastar alguns ramos para conseguir seguir o caminho que se propusera ao sair de casa. Uns ramos mais "teimosos" ocultavam uma pequena cabana. Naquele momento um som abafado ouviu-se ali perto. Parou de empurrar os ramos e ficou em silêncio tentando perceber de onde vinha o som mas fora em vão. O barulho cessara praticamente ao mesmo tempo que ela parara. Pensando que o som que ouvira era o local a responder à sua intromissão seguiu empurrando os ramos e pouco depois chegara à entrada do que outrora fora um quintal. Olhou-o tentando adivinhar como seria nos tempos em que ali vivia alguém. Imaginava a cerca de madeira pintada de branco, os canteiros de pedra cheios de roseiras e tulipas. O banco de ferro preto com almofadas enormes onde certamente a dona da casa esperava pelo marido enquanto as crianças brincavam na relva bem cuidada. O desgaste da pedra dos degraus era testemunha do vai e vem que ali houvera. As janelas de madeira ainda tinham restos de tinta castanha e para sua surpresa os vidros ainda estavam intactos. Sem conter a curiosidade sobre o seu interior empurrou a porta que cedeu com demasiada facilidade.

- Bolas! Quase que me mata.
- Desculpe. - Valerie olhava atónita para o homem que estava à sua frente esfregando a cabeça. - Pensei que não estivesse ninguém em casa.
- Pois já viu que tem. 

O homem continuava esfregando a cabeça visivelmente aborrecido. Valerie sentiu uma vergonha enorme. Que diria ele a ver a sua casa ser invadida por uma estranha? 

- Desculpe.
- Está a repetir-se.
- Não sei que mais dizer. - Valerie olhou-o envergonhada - Sinto muito ter entrado assim.
- Mas não lamenta ter atirado com uma porta na minha cabeça.
- Claro que sim! Por quem me toma?!
- Não sei. Nunca a vi por aqui.
- Deixe-me ver se está ferido. 
- É enfermeira? 
- Não sabia que era preciso ser. - Valerie levou a mão até á dele e retirou-a deixando a descoberto um vinco enorme em tons avermelhados na testa dele. - Amanhã terá um pequeno hematoma mas não é grave.
- A cabeça não é sua. 
- É sempre assim? Já pedi desculpa. Talvez assim aprenda a não ficar atrás das portas.
- Não estava atrás da porta. Eu ia sair quando fui agredido.

Naquele momento o relógio dela recordou-lhe que estava na hora de regressar. 

- Desculpe mas tenho que ir. E para que conste, não o agredi. Não intencionalmente.
- Se você o diz. 
- Oh... Olhe, sabe que mais? Não tenho paciência para gente arrogante. Principalmente quando ainda não bebi café. Até mais ver.

  
O caminho de regresso pareceu-lhe demasiado curto para o que sentia. Vergonha por se ter deixado levar por um capricho de criança e entrado numa casa sem ser convidada, raiva por aquele homem a considerar capaz de uma agressão. Quem é que ele se julgava?! Não a conhecia de lado nenhum! Então porque supunha algo semelhante? Esperava bem que ele não tivesse comprado a casa mas se assim  fosse que a sua mãe não fizesse amizade com o vizinho. Não se queria cruzar com ele quando a viesse visitar. Era arrogante, exasperante e sem educação! Não largara a mão dela quando ela lhe retirou a dele para lhe ver a testa. A boa educação diz que não se deve segurar a mão de uma senhora demasiado tempo e ele segurara pois ainda sentia o calor da mão dele na sua. 

- Que raiva! - Valerie empurrou o pequeno portão com fúria - Olha que...
- Algum problema?

Valerie olhou para a mãe e forçou um sorriso.

- Não. Estava a falar comigo mesma. 
- É mal de família.- Lana sorriu tristemente - O teu pai falava muitas vezes sozinho, dizia que...
- Gostava de uma conversa inteligente. - Valerie acabou a frase pela mãe - Desculpa ter saído sem te avisar.
- Não és mais criança. E imaginei que estivesses a explorar a zona. Sei como gostas do campo.
- É verdade. - Valerie olhou para o solar - Pensas realmente viver aqui?
- Sim. Já falei com Steven e os advogados dele vão tratar de tudo para colocar a quinta no teu nome, era o que o teu pai...
- Não quero saber disso. Só estou preocupada. Aqui não conheces ninguém.
- Tenho Tim e a esposa dele.
- Por acaso eles sabem que irão trabalhar para ti?
- Detalhes sem importância.- Lana fez um gesto de impaciência com a boca - E, como  estava dizendo, futuramente o filho dele correrá por estes jardins. E quem sabe se não brincará com um dos meus netos.
- Oh mãe. 
- Olha, porque não vamos ver os álbuns até que Steven chegue?! Porque chega hoje, não?
- Acho que sim.  

A mãe "apresentou" a família e contou histórias da sua infância. De como fora feliz ali e de como fugia, pelo mesmo portão que ela usara, para ir até à aldeia comer gelados.  Valerie percebeu que a mãe não falara da sua juventude e que colocara de lado um álbum mesmo sem o abrir, o que aumentou a sua curiosidade. Queria saber o motivo que levava a sua mãe a "fugir" daquele álbum e a esconder as suas aventuras de adolescência mas o olhar da sua mãe mostrava dor, muita dor. Sabia que algo se tinha passado entre eles pois mal o pai teve alta do hospital foram buscá-la e depois dessa visita nunca mais lá voltou. Alguma coisa tinha acontecido para que a família se tivesse afastado mas se a sua mãe não queria falar nisso ela só tinha que respeitar. Afinal ela também tinha os seus segredos. 
O som irritante do telemóvel da sua mãe ecoava pelo salão Valerie olhou para o ecrã. Steven?! Porque não lhe ligara a ela?!

- Podes atender? - Lana começou a colocar os álbuns numa das estantes.
- Estou.
- Finalmente! Não levaste o telemóvel?
- Sim mas... - Valerie sentiu o coração bater apressado. Onde o tinha deixado? 
- Não importa. Não vou conseguir ir hoje e não sei se irei amanhã. A situação é mais complicada do que eu esperava.
- Queres que vá no comboio ou de autocarro?
- Esta tarde irá chegar uma equipa de canalizadores para verificarem se existem risco de ruptura em algum dos canos. - Steven continuou ignorando a pergunta dela - A tua mãe não quer um estranho a mexer nas coisas que eram da tua avó, o que eu compreendo, mas penso que será sensata o suficiente para perceber que certas coisas terão que ser feitas por alguém credenciado e não por Tim ou vocês.
- Isso quer dizer o quê?
- Que terás que ficar aí. A equipa que vai trabalha para mim á algum tempo por isso não se preocupem com nada. A menos que a tua mãe insista em pagar o serviço. Vou enviar alguma roupa para ti, imagino que precisarás de algo mais prático. 
- Não vens ao solar?
- Vou assim que conseguir resolver tudo. 

Steven desligou o telemóvel e ela olhou para a mãe que, olhando um dos álbuns, parecia alheia ao que a rodeava. 

- Mãe? Steven não vem mas pediu a uns amigos para virem ver as canalizações.
- As canalizações estão boas. - Lana falava calmamente e sem olhar para ela - Basta uns dias de uso normal para funcionarem perfeitamente. 
- Estiveram muitos anos sem funcionar.
- Anos?! Mary sempre veio aqui limpar e cuidar da casa. Claro que a idade já não lhe permite fazer as coisas com a mesma facilidade de outros tempos.
- Deves estar a fazer confusão.
- Confusão?! Não estou senil! - Lana bateu com a mão no álbum - Sei bem o que digo. A mãe de Tim continuou a tratar da casa mesmo depois da tua avó falecer.
- Não sabia. Nesse caso temos que lhe pagar estes anos todos de serviço. Vou pedir a Steven que trate disso. 
- Vocês são todos iguais... - Lana levantou-se e ficou a olhar o jardim - Vocês pensam que quando chegamos a uma determinada idade somos incapazes de cuidar da nossa vida. 
- Não é isso, é que...
- Desculpe senhora. - Tim entrou naquele momento - Está uma carrinha junto ao portão.
- Obrigada Tim. - Valerie olhou para a mãe sem entender o silêncio desta principalmente depois da conversa que estavam a ter - Podes ir abrir? São os canalizadores que o meu marido enviou. 
- Com certeza menina. 

Valerie esperou que Tim saísse da sala para retomar a conversa com a mãe mas não teve oportunidade pois a mãe resolvera subir.
A equipa que Steven enviou depressa encheu a casa de homens subindo e descendo fazendo os mais diversos trabalhos. Após falar com Hall, que lhe garantiu não precisar dela, decidiu fazer o mesmo que a sua mãe e subiu para o quarto. Tentou ler mas o barulho dos homens não a deixavam concentrar. Lembrou-se do banco junto ao lago e a ideia de ler ali parecia demasiado apelativa. Sem hesitar agarrou o livro e uma manta e desceu decidida a aproveitar o sol.
Ao chegar ao jardim a sua mãe falava com Tim que lhe mostrava umas folhas enormes. 

- Vou passear um pouco. - Valerie olhou para as folhas onde se via um projeto do jardim.
- Fazes bem. - Lana respondeu-lhe sem deixar de olhar para a folha que Tim segurava.


Valerie empurrou o portão e notou que este se abria com mais facilidade. Sorriu pensando na quantidade de vezes que a sua mãe o teria aberto nas suas fugas e nas inúmeras aventuras que vivera na sua juventude.  Ainda sorria quando chegou ao banco junto ao lago mas desta vez tinha uma ocupante.  Uma mulher de aparência frágil e franzina olhava o lago como que hipnotizada.  Possivelmente ela era a dona daquele banco e naquele momento revivia o que outrora foram tempos felizes. Não querendo ser uma intrusa decidiu regressar ao solar. 

- Arrependeu-se?
- Desculpe?!
- A menina vinha aqui fazer alguma coisa mas por alguma razão resolveu dar meia volta e regressar. 
- Não quero ser intrometida. 
- Aqui na vila ninguém incomoda ninguém. Somos como uma grande família. - A mulher olhou fixamente para ela - A menina é igualzinha à sua avó. Já lhe tinham dito? 

Valerie olhou a mulher com visível assombro. Seria amiga da sua avó?

- Conheceu a minha avó?
- Todos conheciam. - A mulher fez sinal com a mão para que ela se sentasse- Trabalhei para a sua avó muitos anos. E ainda conheci a sua bisavó. 
- É a mãe de Tim?
- Sim. Estou a ver que não me obedeceu, mesmo sem conhecer as pessoas fala sem parar. Aquele rapaz não tem emenda. Mas que se pode esperar?! Quem sai aos seus...
- É parecido com o pai? 

Naquele momento a mulher soltou uma gargalhada. Não se surpreendia, até ela tinha vontade de rir pois as semelhanças eram evidentes mas achou indelicado sugerir que ela estava a falar demais. 

- Com o pai? Ai menina, vê-se que não o conheceu. Se lhe arrancasse duas frases seguidas era muito. O meu Tim é como eu. Em começando a conversar diz o que quer e o que não quer também. - A mulher fez uma pausa e esfregou a mão na saia preta- O meu marido era como o seu avô. Se bem que o seu avô era mais rude e queria tudo ao seu jeito. E ai de quem lhe fizesse frente! Não me interprete mal, o seu avô, apesar de austero, era um homem justo e com um enorme coração. Acho que só o vi sorrir no dia que nasceu a sua mãe. Já a sua avó era o oposto, sempre de sorriso no rosto e uma palavra amiga para todos. A sua avó só perdeu o sorriso quando o marido renegou a própria filha. 
- Não entendi. 
- Outros tempos menina. Bom, acho que vou indo. Já não sou jovem e quero chegar a casa antes da minha nora. 
- Quer que a acompanhe?
- Não é preciso. Vou por um atalho e chego lá rapidamente. A menos que queira descobrir como fugir daqui sem ser vista.
- É possível?
- Se estas árvores falassem... Sabe, às vezes é bom fugir de tudo e de todos, ter um espaço só nosso. Tipo um refúgio. 

Valerie sorriu para aquela mulher que apesar de só a ter visto naquele momento já conquistara o seu coração. Sentindo um pouco de empatia por aquele ser peculiar seguiu-a, nem sempre a seu lado pois o caminho nem sempre o permitia mas atenta a todas as palavras que lhe dizia e tentando ler nas entrelinhas. Quantas vezes ela inventara desculpas para a ausência da sua mãe?


















terça-feira, 13 de agosto de 2024

O Padre II parte






Valerie olhou para o padre e sorriu ligeiramente. A vida dela melhorara ligeiramente desde que começou a frequentar a igreja. Já tinham passado seis meses desde que Steven a levara à igreja pela primeira vez e desde então esperava no carro enquanto ela assistia à missa sem reclamar do tempo que aguardava. Mentalmente agradecia ter aqueles momentos a sós. Fazia-lhe bem à alma estar ali e de certa forma falar com o velho sacerdote sobre trivialidades dava-lhe uma sensação de paz e normalidade. No regresso a casa sentia-se mais leve, mais conformada com o seu destino. Às vezes achava que ele andava menos controlador, menos ciumento. Um dia ele tinha sugerido que fosse comprar um vestido novo para um dos jantares da empresa mas ela ficara desconfiada e temendo uma cena de ciúmes quando chegasse o dia do jantar disse que não precisava de roupa, que tinha vestidos suficientes. Ele soltou uma gargalhada e dissera que ela era a primeira mulher que conhecia que não precisava de comprar roupa. 
Recordava ter olhado para ele tentando perceber se estava a ser irônico mas, se estava, o seu olhar não o demonstrava. 

- Caros irmãos. - A voz do sacerdote trouxe-a à realidade. - Volto a fazer o apelo para a família que neste momento está em apuros financeiros. Agradecemos toda e qualquer ajuda que possam e queiram dar. Na mesa à saída estão vários cartões com os nomes dos bens necessários. Estão à vossa disposição para levar ou consultar. Os bens serão entregues aqui na paroquia de modo a respeitar a privacidade da família. Desde já agradeço a ajuda de todos. 

Os sussurros começaram à medida que as pessoas iam passando e algumas iam retirando alguns cartões. Levantou-se e colocou um no bolso do casaco. Em casa iria ver com mais atenção.

- Vejo que continua a vir sozinha. 
- O meu marido prefere ficar lá fora. 
- Não estou a julgar! - O velho padre sentou-se e fez-lhe sinal para se sentar também - Este frio acaba com os meus ossos. Graças a Deus estou a dias da reforma.
- Vai-se embora?!
- Está na hora. Mas não a vou deixar sozinha, o meu substituto chega amanhã para se ir familiarizando com a paróquia. 
- Vou ter saudades suas.
- Sinto-me lisonjeado. Mas vai gostar do novo pároco. É mais novo, tem outras ideias. Ideias mais modernas. Pode ser que consiga aumentar a congregação.  
- Pensei que a igreja não corresse atrás das "modernices"
- Tudo se moderniza minha querida. Não sei se para bom ou para mau mas é assim. - O padre passou a mão pela batina e bateu com a mão nos joelhos - Não faça esperar em demasia o seu marido. Amanhã cá a espero para lhe dar a conhecer o seu novo confessor. 
- Cá estarei. 

Valerie mordeu o lábio e olhou para o padre que sorriu ligeiramente enquanto lhe abria a porta.

- Fé minha querida, ela move montanhas. 

Steven saiu do carro quando eles saíram da igreja. Valerie caminhou em direção ao marido mantendo as mãos nos bolsos e brincando com o cartão. 

- Não tarda está a chover. - Valerie entrou no carro perguntando-se se seria um bom momento para abordar o assunto com ele.
- Assim parece. Felizmente não precisamos sair de casa hoje.
- Graças a Deus nós temos casa.
- Esse comentário vem a respeito de quê?!
- De nada. Ás vezes não damos valor a que temos. 
- Sim... mas tenho a sensação que me estás a esconder algo.

Valerie tirou o cartão do bolso e ficou a olhar para o mesmo fixamente.

- Não estou a esconder nada, simplesmente acho que não te interessa.
- Porque não me contas e me deixas decidir?
- Hoje fizeram um apelo. - Valerie mordeu o lábio antes de continuar. - Uma família precisa de ajuda.
- Que tipo de ajuda?
- Financeira. Mas pelo que percebi aceitam qualquer dos produtos deste cartão. 
- Maldita crise! Têm crianças?
- A julgar pelo pedido de fraldas penso que sim. 
- Amanhã entregas um cartão da empresa ao padre e pedes para entregar ao pai da criança.
- Vais ajudar?
- Achavas que não?! - Steven olhou-a por uns segundos - É essa a ideia que tens de mim?! Deus do céu! Eu sei que... - Steven calou-se por uns segundos - É assim que me vês? 

Valerie olhou para ele tentando perceber se estava genuinamente ofendido. Que queria que pensasse?! Nunca soube o que esperar dele e os últimos meses vieram confirmar que ele era inconstante. 

- É que não...
- Não interessa. - Steven interrompeu-a - Faço questão de ajudar. Já diz o proverbio chinês que se deres um peixe ao homem ele se alimentará por um dia mas se o ensinares a pescar ele se alimentará por toda a vida.
- Uma grande verdade.

Durante o regresso a casa o tema de conversa foi a crise que o país atravessava. Por uns momentos parecia terem voltado ao tempo de namoro e deu a sua opinião como não fazia à imenso tempo. 

Assim que chegou a casa, com aprovação do marido, fez uma lista de coisas que iria comprar no dia seguinte e Steven colocou alguns cartões junto às chaves do carro antes de se concentrar nas notícias. Um misto de emoções reinava no seu peito quando se deitou. Tentou ler mas a sua mente tentava decifrar aquele homem que estava na sala. Aquele não era o homem com que tinha vivido os últimos anos. Pensando bem não importava quem era o novo Steven, o importante era poder ajudar aquela família. Com esse pensamento adormeceu com um sorriso nos lábios.

Chovia copiosamente quando entraram no centro comercial para fazer as compras. Olhou para o marido que empurrava o carrinho pelos corredores do supermercado colocando artigos dentro do mesmo com toda a segurança do mundo como se fizesse aquilo com regularidade e percebeu que nunca tinham ido juntos ao supermercado. 

- Acho que exagerámos. - Valerie olhou para ele enquanto colocava os produtos no tapete da caixa.
- Não te preocupes.

Valerie olhava as compras sentindo-se feliz por aliviar as preocupações daquela família por algum tempo. E esse pensamento acompanhou-a durante a homilia dessa manhã. Tinha a certeza que nada podia tirar-lhe aquele sentimento de bem estar. 

- Hoje o seu olhar brilha. - O velho sacerdote sentou-se no banco que geralmente ocupavam no final da igreja. - Gosto de a ver assim. 
- Trouxemos uma pequena ajuda para a família. - Valerie tirou o cartão da empresa do bolso - O meu marido pediu para fazer chegar o cartão ao pai pedindo-lhe que vá à empresa. 
- Isso é maravilhoso. 
- Sr. Padre! - Uma senhora de cabelo grisalho e rosto afogueado entrou na igreja - Venha ver. Rápido! Não vai acreditar!
- Oh mulher de Deus tenha calma. - O velho padre levantou a mão em direção ao altar enquanto se levantava. - Vou ver o que se passa lá fora. Entretanto deixo-a com o padre August. August, Valerie. O membro mais novo do nosso rebanho.

Valerie olhou para o homem que estava à sua frente. Devia ter uns trinta anos, olhos castanhos escuros, cabelo preto, bem constituído fisicamente e bastante alto.

- Valerie... ouvi falar muito de si. - August sorriu - Espero merecer a mesma confiança que depositou no meu antecessor. Assim com espero que continue a vir à missa frequentemente.
- Certamente virei. 

Valerie sorriu e encaminhou-se para a porta seguida por August. O seu coração bateu agitado ao pensar no que diria o marido ao ver o padre novo. Mas este parecia demasiado ocupado em colocar os sacos na carrinha da paróquia. Steven sorriu para ela, tinha o rosto rosado e o olhar brilhava de satisfação. O coração dela tranquilizou-se ao ver como Steven parecia não dar importância ao novo padre. Realmente ele estava mudado e ela só podia agradecer por isso. Finalmente sentia que uma luz brilhava no fundo do túnel que era o seu casamento. 



- O seu marido continua a esperar lá fora? 

 O padre August, assim como o seu antecessor, tinha sempre uns minutos para falar com ela. Inicialmente sentiu um pouco de vergonha de falar dos seus problemas com alguém tão jovem mas depois percebeu que August não a julgava, aliás, chegara a comentar que conhecia muitos casamentos parecidos, casamentos que duraram apenas por vergonha do que os demais iriam dizer.  

- Sim. E eu agradeço por estes minutos a sós.
- Imagino. - August colocou a mão sobre a dela - Sei que o seu casamento não tem sido fácil mas as coisas melhoraram. A intenção de se divorciar já não se coloca?
- Sinceramente não sei. - Valerie retirou a mão e rodou a aliança no dedo - Tenho medo, não vou negar. Neste momento está mais calmo mas não sei se posso respirar de alivio. Um alivio definitivo, entende? Acho que nunca irei deixar de sentir esta pressão no peito sempre que ele se atrasa ou está mais nervoso.
- É normal mas tenho a certeza que quando casou, casou por amor. Esse amor está aí guardado esperando que o deixe sair. O amor verdadeiro não desaparece à primeira dificuldade. Quer uma sugestão?  - August não esperou que ela respondesse - Porque não faz uma surpresa ao seu marido?
- Surpresa?! Como assim?
- Às vezes basta um gesto simples como um convite inesperado para um café, um almoço para que tudo volte ao que era. Porque não aparece inesperadamente no escritório? 
- O problema é que o meu casamento nunca foi esse tipo de casamento.
- Mas não diz que o seu marido está diferente?! Então porque não tentar? Não tem nada a perder.
- Tem razão. 

Valerie saiu da igreja sentindo a esperança de uma vida mais calma renascer dentro dela. Realmente não tinha nada a perder. 

- Não te aborreces de esperar?
- Hoje não esperei. - Steven embrenhou-se no trânsito - Aproveitei para beber um café e confirmar umas reuniões. Não faz muito sentido estar ali olhando para a porta numa praça deserta. 
- Ah... Pois...Está muito frio.
- Está mesmo. 

Aquela revelação deixou-a sem saber que pensar. Sempre imaginara que ele ficava ali fora como um cão de guarda. Saber que o marido lhe dava um pouco de liberdade reforçava a ideia que estava realmente mudado.

Steven, apesar de algumas noites chegar mais tarde a casa, parecia mais descontraído. Semanalmente levava-lhe uma rosa ou uma tulipa e continuava a levá-la à igreja todos os dias. A presença dos amigos deles fora reduzida a um jantar ocasionalmente assim como as saídas com Laís. Talvez fosse isso que o casamento deles precisava, uns ajustes nas rotinas de cada um. Ele reduzira os encontros com os amigos e ela as saídas com Laís. Ele aumentara as noites do escritório e ela começara a ir à missa. Foram pequenos ajustes mas que fizeram a diferença. 
À noite dava por si a olhar para ele e a pensar que era fácil apaixonar-se por ele. Percebeu que não fugia para o quarto depois de jantar preferindo ficar na sala a ler enquanto ele via televisão. E deu por si a gostar de ouvir a chave na porta quando chegava o fim do dia. 

- Não consigo perceber o fascínio por esses livros enormes.
- Não são assim tão grandes.
- Não?! - Steven puxou o livro das mãos dela - 645 páginas... pouca coisa.
- Eu gosto.
- Já tinha percebido. - Steven atendeu o telemóvel quando este tocou - Sim?

Valerie ficou a olhar o marido por uns instantes enquanto este ia soletrando palavras isoladas. Voltou a concentrar-se no livro mas por pouco tempo.
 
 - Preciso voltar ao escritório. - Steven agarrou as chaves do carro e voltou-se para Valerie - Não demoro mas não precisas esperar por mim.
- Está bem.

Valerie voltou à leitura e quando terminou o capitulo que estava a ler percebeu que tinha passado quase uma hora sem que Steven tivesse regressado. Há muito tempo que Steven não saía de casa depois de jantar. Temendo o regresso dele deitou-se inquieta mas, quando o sol entrou no quarto acordando-a, e percebeu que Steven dormia a seu lado, ficou admirada por ter dormido profundamente. Podia não ter ouvido quando ele entrou em casa mas quando se deitou a seu lado deveria ter dado por isso! Estava tão tranquila quanto ao relacionamento deles que já adormecia sem preocupações?! Independentemente do motivo ela agradecia por a relação deles estar a navegar em águas mais calmas. 
Tentando não o acordar foi tomar duche e preparar o pequeno almoço. 


- Bom dia. - Steven entrou na cozinha ainda de pijama. 
- Bom dia. Não vais ao escritório? 
- Vou um pouco mais tarde. - Steven dirigiu-se a ela e depositou um beijo na testa dela. - Estava a pensar em fazer algo diferente.
- Queres dizer não ir à missa?
- Sim... Afinal hoje é um dia especial.
- É verdade. - Valerie tinha esquecido que faziam anos de casados - Mais um.
- É mesmo. Mais um. 

Valerie olhou para ele fixamente. Tinha a sensação que ele ia dizer algo mais mas Steven apenas sorriu e dirigiu-se ao quarto. 
Steven saiu para o trabalho pouco depois e ela ficou a pensar em como ele estava estranho essa manhã. A meio da manhã ligou a avisar que não ia almoçar, que tinham reserva para jantar mas que vestisse algo prático.
Algo prático... o que ele considerava algo prático?! Um fato de treino?! Um vestido simples mas elegante?! Uns jeans?! Sem saber o que ele queria dizer levou a tarde a experimentar roupa de modo a se sentir "prática" mas sem quebrar as regras dele. Finalmente optou por um clássico. Uns jeans pretos, uma camisa branca e um blazer preto. As suas botas pretas, uns brincos e um colar comprido dariam ao conjunto um ar elegante. E se tinha algumas dúvidas as mesmas desapareceram quando se viu ao espelho. As calças não marcavam a sua silhueta em demasia e a camisa dava o toque elegante que ela queria transmitir. 

- Não era isso que tinha em mente mas tenho que admitir que te fica bem.
- Se preferes...
- Não. Estás linda. - Steven sorriu - Hoje não dormimos em casa.
- Onde vamos?
- Logo vês.
 
Aquela resposta direta, sem qualquer conversa que a antecedesse, disparou uma espécie de alarme na sua cabeça. Teria feito bem em decidir o que ia vestir sem o consultar?! Geralmente ele é que escolhia o que ela deveria usar sempre que socializavam. Os seus temores aumentavam à medida que os sons que vinham da casa de banho se sucediam antecipando o momento em que ele se juntava a ela. 
Aguardou a reação dele ao sair do chuveiro mas apenas recebeu elogios dele, o que originou ainda mais desconfiança. Sentindo o coração bater apressado, viu-o abrir o roupeiro e retirar umas calças e uma camisa que vestiu num ápice. Colocou um cinto e os sapatos e só depois escolheu o casaco. Abriu uma porta e retirou uma mala pequena que colocou em cima da cama. 

- O teu pijama?
- Não dormirmos em casa!?
- Pensei que o tinha mencionado.
- Sim.
- Então apanha um pijama. 

Olhou-o enquanto abria uma gaveta e agarrou o primeiro pijama que viu. Lutando contra o tremor que sentia interiormente meteu-o na mala e fechou-a encarando-o.

- Pronto. 
- Então vamos.

As nuvens não deixavam ver o sol esconder-se no horizonte à medida que eles se embrenhavam no trânsito. Ela não conseguia deixar de analisar a situação... Apesar da forma como a tratava nesse dia Steven fazia questão que fossem jantar e depois beber café numa esplanada. Não entendia porque ele insistia em festejar pois estavam longe de ser um casal normal. Ele, devido aos ciúmes, não confiava nela e ela, por esses mesmos ciúmes, tinha medo dele. Geralmente jantavam em silêncio e ela pedia mentalmente a Deus que ele não fizesse uma cena por alguma insignificância. 
 Mas naquela noite não sabia que pensar daquele secretismo todo. Precisava pensar no quão ele estava mudado, porque estava. Os últimos meses eram provam disso e segundo o padre August, era nisso que se tinha de focar. Tentou pensar no quão amável ele tinha sido, na "liberdade" que lhe dera... Estavam a recomeçar! Queria acreditar nisso. Aliás, para bem da sua sanidade mental, ela precisava acreditar que assim era.
Mas na sua mente surgiam nova pergunta...se estavam a recomeçar, a percorrer um novo caminho, sem tanto espinho, porque não conseguia desfrutar daqueles momentos? Ela sabia porquê. Não era fácil pensar apenas no dia de hoje quando ela sabia que ele podia explodir a qualquer momento. Ela sabia bem que ele era mestre em colocar uma máscara e só a retirar quando lhe convinha. Existia tanta nuvem cinzenta e negra na vida deles em comum como as que corriam pelo céu nublado naquele fim de tarde. A história deles era de temor, de sentimentos e palavras reprimidas. Não, ela não conseguia confiar a cem por cento no novo Steven.  
Esses pensamentos acompanharam-na durante todo o jantar e, apesar da conversa fácil dele, não conseguiu aproveitar a noite e muito menos o café numa esplanada junto ao cais. Era como se o passar do tempo lhe recordasse que estava mais perto de ficar a sós com ele. Onde?! Só Deus sabia.

- Estás muito calada.
- Ainda tento adivinhar onde vamos. - Valerie olhou diretamente para ele - Não posso saber?
- Se te dissesse não seria surpresa. 
- Surpresa... Não gosto de surpresas!
- Não?! Se bem me lembro gostavas imenso.
- As pessoas mudam.
- E ainda bem que o fazem. Já imaginaste se...

 Deixou de o ouvir quando percebeu que tinham deixado a cidade. Na sua mente surgiu uma cabana no meio de nenhures, sem qualquer casa por perto. E certamente sem rede móvel ou acesso à civilização. Oh, Deus! Para onde ele a levava?! Seria ela mais uma da vitimas de violência doméstica?! Teria ele escondido uma arma?! Ou teria organizado um plano para parecer um acidente?! Seria essa a urgência da noite anterior?! Organizar um plano para se desfazer dela ou, na melhor da hipóteses pois continuaria viva, dar-lhe uma lição?! Nunca imaginou que faria parte da enorme lista de mulheres que sofrem às mãos dos companheiros.

- Valerie?! 
- Ah?!
- Estava a perguntar se tens frio. Estás a tremer.

Estava?! Olhou para as suas mãos e realmente tremiam. Tal como as suas pernas. 

- Sim, um pouco. - Mentiu evitando o olhar dele. Era melhor concordar com ele.
- No banco de trás está uma manta. Tenta dormir um pouco, ainda vamos demorar.
- Está bem.

Agarrou a manta mecanicamente e enrolou-se nela fechando os olhos. A sua intenção era fingir que dormia mas percebeu que tinha adormecido realmente quando uma leve dor na cabeça a acordou. O seu primeiro pensamento fora que ele a estava a agredir mas uma reclamação contida fê-la perceber que ele ainda conduzia.

- Desculpa, não imaginei que a estrada tivesse tantos buracos.
- Onde estamos?
- A chegar. 

Valerie olhou em redor tentando perceber onde estava. A luz dos faróis revelavam um caminho de terra batida ladeado por árvores bastante altas. Tinha a sensação de conhecer o lugar mas na escuridão da noite não conseguia perceber onde estava. A visão de um portão alto de ferro semiaberto foi como um choque elétrico que a tirou da torpeza em que se encontrava . Estavam no solar! 

- O solar...
- Sim. Falei com a tua mãe e ela disse que fazia muito tempo que não vinhas cá, que ela estava a pensar em regressar ... - Steven fez uma pausa - Sabes como é a tua mãe. Resumindo. Achei boa ideia virmos até cá ver como estão as coisas e aliviar a tua mãe dessa tarefa. Que dizes?
- Nem sei que diga. Tens noção que aqui não existem as comodidades do apartamento?
- Uma noite não faz mal a ninguém. E depois, nem sempre dormi numa boa cama.
- Não?
- Não. 

Steven saiu do carro dando a conversa por terminada. Valerie ficou a olhar para ele enquanto ele empurrou o portão com alguma facilidade. Nunca poderia imaginar que o seu destino seria a casa da sua avó. Tinha ido ali uma ou duas vezes. Não se recordava muito bem da avó. Aliás, não se recordava da família da sua mãe.

- A tua mãe chega amanhã. - Steven entrou no carro para sair logo a seguir - Negou-se a vir conosco, usando as palavras dela " não quero interromper nada"
- Típico dela.
- Nem que estivéssemos em lua de mel! 

Steven soltou uma gargalhada e ela sentiu as faces ficarem vermelhas. Ele tinha o poder de a fazer sentir envergonhada com coisas tão simples e básicas como a relação carnal entre um homem e uma mulher. 


- A tua mãe ligou enquanto dormias, diz que chega antes de almoço. - Steven agarrou a mala que ela tinha na mão e dirigiu-se à entrada - Entramos?
- A casa deve estar um gelo.

Mas para sua surpresa a casa tinha uma temperatura amena e no ar um leve aroma a pinho. Olhou em redor, num canto uma cadeira tinha uma boa quantidade panos brancos dobrados e percebia-se que alguém limpara aquela divisão. A lareira estava acessa e na frente desta um enorme sofá, que já tinha visto melhores dias, e uma pequena mesa de apoio.

- Acho que a tua mãe falou com alguém. 

Valerie olhou na direção dele. Estava junto a uma mesa e segurava um papel.

- Queres dizer que está alguém cá em casa?
- Não me parece. 

Valerie agarrou o papel que ele lhe estendia e leu-o rapidamente. 


" Boa noite.
Cara senhora Dow. Conforme nos foi pedido deixámos a lareira acessa e dois quartos limpos e prontos a usar. Pedimos desculpas por não esperar mais tempo mas temos um filho pequeno e não nos foi possível aguardar mais tempo.
Tem o meu número caso seja preciso algo mais não hesite em ligar. 
Na cozinha há café fresco e um bolo que a minha esposa fez.

Desejo uma boa noite
Atenciosamente
Tim "


- Engraçado. - Steven sentou-se no sofá olhando em redor - Lembro-me de ela ter falado, ainda que vagamente, no solar mas não tinha ficado com a ideia que era tão grande. Parece um castelo.
- Já se passaram muitos anos, talvez quase vinte, desde a última vez que cá estive mas de uma coisa tenho a certeza. Não é um castelo. - Valerie baixou o olhar ao perceber que ele sorria - Bom, talvez se pareça um pouco. É enorme, tem portões de ferro, está rodeado por uma mata... 
- Deve ser fantástico viver aqui.
- Sim. Se bem que na idade da minha mãe não sei. 
- Hoje em dia apesar das distâncias está tudo relativamente perto. E ela terá as suas razões.
- Fizeram café e bolo para nós. Queres?
- Seria de má educação não aceitar.


Valerie dirigiu-se à cozinha e para sua surpresa a máquina do café ainda coava o café. Sorriu ao recordar que a sua mãe também fazia café naquelas cafeteiras. Abriu os armários até encontrar uns pratos e serviu uma fatia de bolo para cada um e uma boa chávena de café .


- Aqui está. Não deve ser do teu agrado. Este café tende a ser mais fraco.
- A esta hora não convém nada de muito forte.

Enquanto bebiam o café a conversa fluiu naturalmente e, após ele falar das viagens que fez durante a sua infância e juventude, ela deu por si a partilhar também algumas partes da sua infância. Não se comparavam com as viagens dele ao redor do mundo mas ele parecia realmente interessado nas pequenas aventuras dela. Contrariamente ao que pensou o resto da noite foi bastante agradável e deu por si a pensar se aquele seria o verdadeiro Steven. 












 

domingo, 21 de julho de 2024

O Padre I parte






- Está tudo bem contigo? 
- Sim.- Valerie olhou para Laís e levou a chávena aos lábios - É apenas uma dor de cabeça.
- Já foste ao médico?
- Não é preciso. Isto passa.
- Tens a certeza que é apenas isso?
- Que mais poderia ser? - Valerie fingiu um sorriso
- Diz-me tu.
- Está tudo bem. - Valerie levantou a cabeça e viu o marido sair do carro. Parecia que sentia a presença dele antes de o conseguir ver - Ali vem Steven.
- Sabes que podes contar comigo. Certo?
- Eu sei mas, como te disse antes, está tudo bem. 
- Qual é a ideia sem sentido desta vez? - Steven olhou para Valerie. Ela baixou o olhar rapidamente.
- Estava a dizer à tua esposa que não tem bom aspeto - Laís não esperou que Valerie respondesse. 
- Pois eu acho que está linda como sempre. Aliás nunca esteve mais bonita.
- Estás esquecido que te conheço desde sempre?!
- Que queres dizer com isso?
- Apenas isso. Que te conheço e sei muito bem o que...
- Conheces?! - Steven mantinha a voz calma - Nunca conhecemos realmente uma pessoa.

Valerie mantinha a cabeça baixa evitando o olhar do marido. Sabia que apesar da calma aparente este não estava a gostar do rumo da conversa. 

- Está a ficar tarde. - Valerie quase que sussurrava.
- Porque não fazemos uma noite só de raparigas? - Laís sorriu para Valerie e depois olhou desafiante para Steven. 
- Hoje não. - Steven colocou a mão nas costas de Valerie e afastou-se da mesa sem se importar com Laís.

Caminhou ao lado dele evitando olhar para trás. Contrariamente a ela Laís gostava de o irritar, de o provocar. Ela não compreendia porque o marido não "explodia" durante essas conversas. Steven agia como se Laís fosse uma criança mimada a quem era permitido tudo com medo de uma birra.  
Na realidade sempre fora assim, ela não tinha memória de ser de outra forma. 

Quando elas se conheceram Steven agia como se Laís fosse a sua irmã mais nova, concordando com tudo o que ela dizia e deixando-se levar pelas brincadeiras dela. Sempre que os via juntos Laís estava colada a ele procurando ser o alvo da atenção dele, o que a levou a pensar que esta tinha uma paixão secreta por ele. Esse pensamento era sustentado pelo facto de nunca ter recebido uma palavra mais amigável da parte de Laís, podia até dizer que sempre a tratara de maneira fria, e até um pouco hostil. Principalmente depois de anunciarem o casamento. Nessa altura pensara que talvez ela alimentasse o sonho de um dia casar com Steven, afinal não era incomum uma miúda pensar que estava apaixonada por um dos seus amigos de infância. E, filho de rico ou pobre, uma criança é uma criança. Com os seus sonhos e ideais. A única coisa que alterava era o facto de estes terem mais facilidade em terem tudo o que querem. A sua mãe dizia que quanto mais dinheiro se possuí mais tolerante se fica a traições e outras coisas que de outra forma não se iria permitir. Talvez Laís pensasse que poderia ser a "amiga" dele mesmo depois do casamento. Aquele pensamento foi como um balde de água fria. Ela não iria tolerar uma traição. Era capaz de perdoar tudo menos isso! 

Como não queria casar com mais essa dúvida pairando na sua cabeça, um dia, comentou o facto com Steven mas este soltara uma gargalhada e dissera que tinha a certeza que Laís não olhava para ele dessa forma. Mas mesmo que assim fosse ela podia ficar tranquila pois para ele era apenas uma amiga muito querida. Recordava ter ficado vermelha de vergonha nesse momento e ficou ainda mais envergonhada quando, depois de a beijar, ele disse que era bom saber os limites dele e que gostava de ver que ela sentia ciúmes. 
Depois desse dia tentou não pensar na proximidade que existia entre eles. Mas a presença constante desta não lhe facilitava a tarefa. Principalmente depois de Laís lhe perguntar se tinha a certeza de amar Steven e se pensara no muito que a sua vida mudaria ao casar com ele pois iria deixar os amigos e tudo o que conhecia para trás.
Nesse momento teve a certeza que Steven estava cego no que dizia respeito aos sentimentos da amiga pois aquelas perguntas só podiam significar que estava realmente apaixonada por ele.

Com a proximidade do casamento as dúvidas que tinha ganharam novas proporções e a presença de Laís, que insistira em ajudar nos preparativos, não ajudava a acalmar o seu inquieto coração. Com medo de fugir e dar um desgosto aos pais começou a evitar a companhia dela pois sentia que todos os seus movimentos eram observados e analisados minuciosamente.
Dizem que uma mulher nunca esquece o dia do seu casamento mas ela já nem se recordava de que sabor era o recheio do bolo. Daquele dia a única coisa que recordava como se o estivesse a viver novamente foi o abraço de Laís ao dar-lhe os parabéns enquanto sussurrava: Desejo realmente que nunca te arrependas deste dia.

- Espero que não estejas a pensar no que disse Laís. - A voz do marido trouxe-a de volta ao presente.
- Estava a pensar no dia do nosso casamento. - Não era mentira mas sentiu um arrepio como se lhe estivesse a mentir.
- Isso foi à muito tempo. - Steven esperou que ela entrasse no carro e arrancou com visível mau humor.

Valerie olhou para as pessoas que passeavam naquela tarde de domingo. Aqueles casais passeando no parque levou-a de volta ao passado quando ela também passeava descontraída ao lado dele.

Os primeiros dias de casamento foram uma extensão do namoro. Steven fazia questão de passear ao fim da tarde enquanto falavam de trivialidades e convencera-se que a sua mãe tinha razão, tudo levava o seu tempo e o amor não era exceção. Ao caminhar ao seu lado tinha a certeza que Steven seria um bom marido. 
Mas em poucos meses esses passeios terminaram e as conversas passaram a ser apenas palavras ao acaso e ela deixara de ser uma jovem sorridente e sonhadora para ser apenas um apêndice dele.
 Depressa percebeu que não lhe era permitido fazer perguntas sobre o seu trabalho e muito menos ter ideias próprias.
A atenção e cuidado que lhe foram dados nas primeiras noites foram trocados por ordens e, recordando as palavras da sua mãe fizera o que esta lhe dissera, obedecera, mas isso não tornou a situação mais fácil. Nem nessa noite nem nas seguintes onde depressa ficou ponto assente que ela estaria à disposição do seu desejo. Na esperança de manter alguma dignidade, pois sentia-se usada, uma noite inventara uma má disposição na esperança de evitar um contacto mais intimo, mas ele ignorara as suas palavras. Sem qualquer tipo de pudor puxou os braços dela para cima enquanto lhe apertava o corpo com o dele e olhou-a fixamente enquanto lhe dizia que ela deveria sentir-se agradecida por estar com ele, que nenhum homem olharia para ela duas vezes, que ninguém gosta de meninas de aldeia a quem se tenha que ensinar o que fazer. Sentindo as lágrimas rolarem pelas suas faces deixou de resistir e entregou-se a ele. No dia seguinte, além das olheiras, tinha as marcas dessa noite nos seus punhos e principalmente na sua memória. Nessa manhã agradeceu não ter que sair de casa para trabalhar.
Depois dessa noite, temendo uma ação mais violenta, nunca mais o contrariou e começou a agir como um robô, tendo o cuidado de estar sempre disposta. E independentemente do que sentia, sempre que ele a procurava, apesar das lágrimas, cumpria o seu papel.
 Felizmente durante o dia podia fingir alguma normalidade. Depois de cumprir os seus afazeres domésticos ia ao supermercado onde demorava mais tempo que o necessário pois regressar a casa era regressar à prisão. Em poucos dias os convites de Laís para ir ao centro comercial começaram a parecer  um bálsamo para a sua alma. Por várias vezes esteve tentada a desabafar com Laís o muito que sofria mas, apesar de esta ser mais amável, ainda não confiava nela. E ainda bem que nunca o fizera pois um dia teve a prova que Laís era uma espécie de aliada de Steven. 


Aproximava-se as festas natalícias e com ela os festejos de ano novo e o jantar da empresa. Geralmente não se importava com o que usava mas naquele dia deixara-se influenciar por Laís que lhe assegurava que precisava de um vestido à altura para a nova posição social. Após algum tempo percorrendo as boutiques a escolha recaiu sobre um vestido preto comprido de meia manga, com um decote pronunciado nas costas e uma abertura lateral até um pouco acima dos joelhos. Um vestido sensual mas sem mostrar demasiado. Nunca tivera um vestido como aquele, sentia que o merecia, que era uma espécie de recompensa por tudo o que passava com o marido. Laís elogiou fortemente a sua escolha e ela saiu sentindo-se uma nova mulher mas a sua alegria depressa se desvaneceu. O marido entrou em casa e foi direto ao quarto sem dizer uma palavra. Quando saiu trazia o vestido nas mãos e pediu-lhe que o vestisse ali mesmo.
Olhou-o desconfiada mas o seu rosto não mostrava qualquer emoção. Relutante vestiu-se rapidamente e por uns breves segundos achou que o marido gostava do que via mas no segundo seguinte sentiu como as mãos do marido agarravam o tecido junto à abertura puxando-o violentamente e rasgando o frágil tecido.

- Estás louco?! - Valerie afastou-se dele.
- Louca estás tu se pensavas usar isso.

Valerie abriu a boca para responder mas perante o olhar furioso dele voltou a fechá-la.

- Com quem pensavas usá-lo?! E não me mintas!

Steven agarrou o braço dela e nesse instante sentiu-se minúscula e indefesa perante ele. Nunca o tinha visto assim. Olhou-o com os olhos cheios de lágrimas quando ele lhe apertou ainda mais o braço. Por instantes apenas se ouvia a respiração agitada dele e os soluços dela. Fechou os olhos quando ele levantou a outra mão e esperou o pior mas apenas sentiu a pressão no seu braço a diminuir e depois um suspiro pesado. O som da porta a fechar-se foi como um interruptor nas sua mente. Laís... só ela sabia que tinha comprado o vestido. Só ela poderia ter falado a Steven sobre ele. Durante o tempo que Steven esteve fora de casa ela reviveu aquela tarde, a insistência de Laís em comprar o vestido, o ar feliz desta ao vê-la com ele. Decididamente não podia confiar em Laís. Naquele momento sentiu-se ainda mais sozinha. 
As lágrimas caiam copiosamente sobre a almofada até que adormeceu. Quando voltou a abrir os olhos a madrugada estava a chegar ao fim e o marido estava a seu lado. Olhou-o por uns segundos e perguntou-se o que tinha feito para merecer que ele a tratasse assim. Fechou os olhos rapidamente quando o marido se mexeu e só os abriu quando sentiu que este saíra da cama. O cheiro a bebida enchia o quarto o que lhe trouxe à memória o seu pai. Estremeceu perante aquele pensamento. O pai nunca permitiria que Steven a tratasse assim... Nesse instante Steven desligou a água e ela fechou novamente os olhos e voltou-se para outro lado rezando para que ele não percebesse que estava acordada. Respirou de alivio quando o ouviu sair de casa.
A meio da manhã surgiu o pedido desculpas acompanhado de um enorme ramo de flores. No cartão o "convite" para irem jantar essa noite e a promessa que o acontecido não se voltaria a repetir. Reviveu os poucos meses de casamento, era plenamente consciente que aquele seria apenas o primeiro de muitos pedidos de desculpas. O correto a fazer era deixá-lo mas a quem recorreria? A Laís que fora a verdadeira culpada daquela situação?! À sua mãe que acreditava que o lugar dela era ali junto do marido?! A um estranho?! Não... a vergonha que sentia perante a situação que vivia era maior que o medo dele. Bastava encontrar um novo ponto de equilíbrio. Estava certa que conseguiria encontrar uma forma suportável de convivência mas pouco a pouco os ciúmes dele foram ganhando força tal como o medo que ela sentia.
O primeiro a sofrer com os ciúmes foi o seu guarda roupa.
Com a desculpa que as suas roupas não eram próprias para a sua posição social comprara-lhe toda uma parafernália de roupas e as dela ficaram destinadas a ser usadas apenas em casa ou quando ia visitar a sua mãe, sempre e quando ele também fosse, caso contrário vestiria alguma das peças comprada por ele.
Um dia, cansada das escolhas horrorosas dele,  agarrou um vestido e ficou a olhar para ele tentando perceber o que o levava a escolher aquelas roupas. Não disse nada a respeito mas, talvez pelo olhar reprovador ou pela quantidade de tempo que demorou a apreciar o vestido, ele percebera que ela não gostava da escolha.  Antes de sair do quarto apenas disse "Mulher séria não mostra o corpo".
E ele levava esse lema muito a sério. Nunca mais vestira uns calções, um vestido sem mangas ou mesmo uma saia mais curta. A ideia que Steven tinha de um casamento era bastante retrograda. Além das roupas, ele achava que as mulheres devem obedecer ao marido, que o seu dever é cuidar da casa e das crianças. Estas não eram um ser independente com ideias nem vontades próprias.
Mas essas opiniões eram apenas partilhadas com ela. Sempre que estava com os amigos ele apoiava a igualdade entre sexos. Apenas houve uma vez em que ela pensou que ele ia deixar cair a máscara...
O jantar decorria em casa de Laís, era o aniversário desta e os amigos mais próximos insistiram em marcar presença. O debate sobre a independência da mulher surgiu entre um copo e outro o que gerava alguma gargalhada pelos comentários atabalhoados. Ela mantinha-se afastada pois aprendera a ficar no seu canto principalmente quando a bebida começava a falar mais alto. Laís levantou-se do sofá e olhou para ela.

- Não achas que ainda há muito a fazer para seremos consideradas iguais?
- Tem calma. - Marc puxou-a novamente para junto dele. - Com o tempo lá chegarão.
- Tempo... é isso. - Steven rodou o copo que tinha na mão - Felizmente a minha mulher não precisa de lutar por esses direitos.
- Se eu tivesse o teu dinheiro... - Marc bebeu mais um gole - Também não estaria preocupado com isso. Nós comuns mortais temos que lutar por cada migalha que comemos.
- Neste momento o lugar da minha mulher é em casa.  Lugar para onde a vou levar.

Todos acharam piada ao comentário e gerou alguns assobios mas ela percebeu que ele não estava a brincar. O lugar dela era na cozinha e na cama dele sempre que ele assim o queria. Despediu-se dos restantes convidados e seguiu Steven com a sensação que seguia o seu carrasco.
Ele nunca chegara a agredi-la fisicamente mas era um mestre em usar as palavras como arma e elas magoavam bem mais. Dor e desilusão faziam parte da sua vida mas não se arriscava a demonstrar nenhuma delas. Aparentemente era uma mulher feliz.
O facto de esconder o que sentia e obedecer sem pestanejar ao que ele queria tornou a convivência minimamente agradável. Tudo se resumia a fazer de tudo para não o irritar. O que significava sair apenas de casa com ele ou quando ele o permitisse. E caso saísse sem ele, coisa que acontecia esporadicamente, Laís era a sua guarda prisional.


- Estou a falar contigo. - Steven olhou para ela.
- Desculpa. Estava a pensar em Laís.
- Essa rapariga está cada vez mais atrevida. Começo a achar que não é boa companhia.
- Tu é que sugeriste que saísse com ela.
- E já estou arrependido. 
- Isso quer dizer que não posso sair com ela?! - A voz dela mal se ouvia. Não queria imaginar se ele a proibisse de sair com Laís - Raramente saio de casa.
- Não tens porque sair. Tens tudo o que precisas em casa!

Steven acelerou o carro que o assunto estava encerrado. Olhou as casas tentando controlar as lágrimas. A ideia de não sair de casa sem ele aterrorizava-a. Podia não confiar em Laís mas ao menos estava fora de casa e era só fingir que estava tudo bem. Se ao menos tivesse um emprego que lhe permitisse fugir para bem longe. Se pudesse contar com a sua mãe. Se não tivesse casado com ele. Se... 


- Vamos. 
- Onde?! - Valerie olhou para o marido fixamente.
- Já vais ver. 

Steven abriu a porta do carro e educadamente ajudou-a a sair do carro. O silêncio reinou entre eles durante a caminhada pois ela temia perguntar novamente onde iam. Pouco depois Steven parou frente a um edifício de pedra. A torre do relógio com um campanário dava a entender que estavam perante uma pequena igreja. A enorme porta de madeira castanha estava aberta e deixava a descoberto a entrada de pedra mármore com duas portas laterais mais pequenas e que permitiam a entrada ao espaço. Olhou-o com lágrimas nos olhos.

- Pensei que ias gostar. Lembrei-me que gostavas de ir à missa.
- Posso?!
- Que pergunta! Claro que sim! - Steven sentou-se num banco ali perto - Espero aqui por ti.
- Tens a certeza? Está frio...

Calou-se ao ver o olhar divertido dele. Como era possível que se preocupasse com ele quando ele a tratava de maneira cruel?
Fazendo o sinal da cruz entrou na igreja. Não havia muita gente e, a julgar pelo ênfase do sacerdote  a homília estava quase no ponto alto.

- Queremos tudo para ontem. Não temos tolerância para com o nosso par. Tu marido, deves ser cordial e amável para com a tua esposa, para com a mãe dos teus filhos. E tu mulher, deves obediência ao teu esposo. Deves proporcionar um lar acolhedor e não deves descurar as suas necessidades...

Valerie baixou o olhar. Até ali, onde sempre encontrou um pouco de paz, lhe era recordado os seus deveres conjugais. E ela tinha a certeza que, apesar da monotonia, não os descurava. Talvez por medo ou porque o seu dia a dia era sempre igual. Não sabia. Sabia apenas que Steven não tinha, pelo menos não devia, do que reclamar. Ela acordava cedo para preparar o pequeno almoço, pouco depois Steven saía para o escritório e ela dedicava o tempo às tarefas da casa. Ia ao supermercado, à lavandaria, organizava as refeições e ao final da tarde ligava para a sua mãe. Fazia o jantar e quando o marido chegava a casa ela colocava a mesa enquanto ele tomava banho. Depois do jantar ela arrumava a cozinha e ele lia o jornal ou via um pouco de televisão. Ela ia ler para o quarto e como uma esposa obediente esperava por ele. Decididamente ele não deveria queixar-se de nada. A única coisa que ele poderia apontar era mesmo esse aspecto. A parte intima... na primeira noite ela pedir-lhe para não acender a luz e ele até àquele momento mantinha o quarto na escuridão. E quando a procurava com beijos e carícias ela rendia-se com uma languidez que se tornara demasiado familiar. Para ela era apenas mais uma tarefa a realizar. Nunca desejou ir mais além ou participar ativamente. E, momentos mais tarde, enquanto o marido dormia, dava por si a pensar na indiferença que sempre sentira. Nunca sentia necessidade de lhe tocar, de o procurar para trocar um beijo ou uma carícia mais intima. Tudo no casamento dela era morno, quase frio. Sim... disso ele podia reclamar.
Perceber que nunca sentiria, ainda que uma simples faísca de desejo, as borboletas no estômago, o nervoso miudinho da espera deixou-a ainda mais angustiada. 
Se nunca sentiu a paixão desenfreada também não sentiria a tranquilidade, o conforto do porto seguro, a familiaridade. A troca de olhares que revelava a cumplicidade e compreensão dos anos vividos em conjunto. Eles simplesmente vivam na mesma casa e partilhavam a mesma cama. E se prezava a sua saúde mental tinha que se focar no aspecto positivo por minúsculo que fosse. E esse aspecto era o financeiro. Constantemente repetia para si mesma que não se podia queixar pois o marido suprimia todas as suas necessidades. 

- Está tudo bem? 

Valerie levantou o olhar húmido pelas lágrimas e um velho padre sorria amavelmente para ela.

- Sim. 
- Não parece.

O padre sentou-se a seu lado e instintivamente ela olhou para a entrada da igreja.

- Estou apenas nervosa. 
- Nunca a vi por aqui. É a primeira vez?
- Sim. O meu marido está lá fora.
- Hum... estou a ver. É ateu. Se a trouxe e não acredita em Deus só pode ser um bom homem.
- Oh não... ele acredita. Casámos por igreja na minha aldeia. 
- Ainda bem. - O padre levantou-se quando um rapaz apareceu junto ao altar - Peço desculpa mas tenho que atender os meus deveres. Gostei de a conhecer senhora...
- Valerie. - Ela aceitou a mão que o padre lhe estendia.
- Eu sou o padre Brow e será sempre um gosto vê-la aqui.
- Obrigada.
- Para a próxima traga o marido. Gostaria de conhecer o homem que ainda tem este tipo de atenção para com a esposa.
- Irei dizer-lhe.

Ao ver o velho padre caminhar em direção ao rapaz sorriu tristemente. Até ali na casa de Deus, onde supostamente não deveria mentir, teve de o fazer. Pensava que ao estar na igreja poderia ser ela mesma mas até ali teve que seguir o papel que se impusera. Os seus dias eram como uma peça de teatro em que ela representava a esposa submissa mas feliz e até ao momento pensava ser bem sucedida no desempenho desse papel. 
Apenas Laís parecia suspeitar de algo mas da mesma forma que esta desconfiava que algo se passava, ela não confiava em Laís. E tirando esta, ela não tinha amigos que pudessem notar a mudança pois Steven encarregara-se de a fazer perceber que esses amigos não eram bem vindos e pouco a pouco foram-se afastando conforme os anos iam passando e a passividade dela aumentava. Mas que podia fazer? A mãe deixara bem claro que o lugar dela era ali com o marido. Um divorcio que colocaria a família na boca do povo não era opção.  Restava-lhe aceitar o seu destino até que Deus assim o entendesse.