terça-feira, 13 de setembro de 2016

DESTINOS CRUZADOS 2ª PARTE




- E nós?! -Su olhava tristemente para ele.
- Nós sempre teremos paris.

 Michel, tomou Su nos braços e depositou nos lábios dela um breve beijo, antes de Su subir para o avião. O ruído do motor era ensurdecedor, mas aos poucos, foi sendo substituído pelo da campainha... Campainha?! Su levou a mão à cabeça, adormecera a ver televisão. Nunca mais ela iria ver Casablanca sem se lembrar daquele sonho! Isto se as recordações se limitassem aos sonhos! As conversas com Rita estavam a afectar o seu subconsciente, há algum tempo que sonhava com Michel, mas neste ele beijava-a! E tinha gostado... mas não passara de um sonho, e lá, ao invés da realidade, era sedutora e sensual... Novamente a campainha...

Devia de ser Rita, não estava com disposição para conhecer mais um amigo, que esta arrastara até ao bar, com a intenção de a conhecer. Tinha de ir, se a conhecia bem, voltaria a tocar a campainha uma e outra vez até que abri-se a porta.

- Não quero ir! - Su dirigiu-se para a porta, reclamando com a amiga - Se pensas que... - Calou-se ao deparar-se com Michel olhando divertido para ela.

- Pelo menos podia deixar-me fazer o convite.

Era mais lindo quando sorria. E a roupa informal ficava mais sedutor...  Fechou os olhos, tinha de pensar noutra coisa, e não em como ele ficava lindo quando sorria, mas a imagem deles se beijando no aeroporto, apareceu na sua cabeça, como se ainda estivesse a sonhar. Abriu-os novamente, não, não fora boa ideia fechar os olhos.

- Posso ajudar?
- Vim devolver o seu casaco, deixou-o no carro.
- Obrigada. - Su agarrou o casaco que ele lhe estendeu
- Está melhor?
- Melhor?!
- Da enxaqueca...
-Ah isso. Sim, obrigada. Não precisava de...
- Podemos ir beber um café?
- Um café?!

Aquele convite deixou-a sem saber que dizer, não estava à espera de nada parecido. Só podia pensar em como ele estava lindo. Pensa noutra coisa... no carro. Pensa no carro. Repetia mentalmente.

- Tem algo contra beber um café?

Su olhou para ele, não viu nos seus olhos nada que a leva-se a recusar o convite. Afinal era só um café.

- Vou vestir algo... Não demoro. - Su voltou-lhe costas, mas lembrou-se que estava frio e ele estava na rua - Quer entrar?
- Obrigada.

Su trocou o fato de treino por umas calças azuis de lã e vestiu uma camisola. Penteou-se e colocou um pouco de espuma, o cabelo estava mais claro, notava isso todos os Invernos, mas mantinha a leve ondulação, herança dos seus avós, colocou um pouco de bâton... De repente parou, que estava a fazer? Nunca se preocupou se o cabelo encaracolava ou não, e bâton?! Não se lembrava da última vez que o tinha colocado! Inconscientemente estava a arranjar-se para ele!  Era apenas um café!

Michel batia com o dedo no aquário de Bublle e este vinha até ele! E repetiu a cena uma e outra vez. Pelo reflexo no vidro, percebia que Michel sorria. Por uns instantes, pareceu-lhe que, afinal ele tinha sentimentos.

- Quando quiser...

Michel voltou a sua atenção para ela, o sorriso desapareceu. Su ficou com a ideia que ele usava uma mascara, mas quem não usa?

Depois de a ajudar a entrar no carro, o silêncio reinou no interior do carro. Ela queria ceder à tentação de observá-lo, mas lembrou-se da última vez. Tinha de dizer alguma coisa...

- Não era preciso convidar-me para beber café. - Su disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
- Não gosta de café?
- Gosto, não é isso. É que...
- Não comece a imaginar coisas. Achei que lhe devia uma explicação. Apenas isso.
- Não me deve nada. É simples, eu travei, você não. Cada pessoa é livre de gostar ou não de animais. Pessoalmente, sou incapaz de fazer mal a um.
- Deu para perceber. Parece-lhe bem este sítio?
- É-me indiferente.
- Não coloque tanto entusiasmo, as pessoas podem pensar que está a gostar. - Michel parou o carro e abriu-lhe a porta, sentiu a mão dele nas suas costas e afastou-se. Mas ele percebeu o gesto, e pela cara que fez, não gostou.
- Desculpe.
- Geralmente é assim ou simplesmente não simpatiza comigo? - Michel olhou nos olhos - É melhor não saber a resposta.

Entraram e ocuparam uma mesa ao fundo, longe da porta e do barulho das demais conversas. Pediram dois cafés, ela olhou ao seu redor, as mesas eram redondas, os bancos acolchoados davam o conforto suficiente para que os clientes desejassem ficar. A musica calma, convidava a relaxar, no geral era agradável.

- Nunca cá esteve?
- Raramente saio. - Estava tão distraída que acabou por dizer a verdade. Geralmente dizia que não conhecia, que preferia a pastelaria do seu bairro, qualquer coisa, mas desta vez não pensou.
- Custa-me acreditar, é jovem.
- Tenho coisas mais interessantes que fazer.
- Como provocar acidentes?!

Su irritou-se com a insinuação, não gostou e estava a pontos de lho dizer, mas ao olhá-lo viu que sorria e tentou brincar.
- Não costumo provocar muitos.
- Não acredito nisso.

 Ele olhou-a nos olhos, e ela sentiu o seu coração disparar.
- Pois, provoquei um...
- Por acaso provocou, mas também tenho um pouco de culpa. Devia de conduzir mais afastado do seu carro. - Perdeu-se um pouco a olhar o café - Não estava num bom dia. Apenas queria chegar a casa, nada mais. Perante a lei sou culpado, eu é que lhe abalroei o carro, você é que travou repentinamente. Mas se tivesse mantido a distância, tudo isto se tinha evitado. Confesso que estava furioso consigo. E fez-me perder imenso tempo! E vê-la ali, a gritar comigo...
- Não fui a única que gritou! - Ela exaltou-se
- Não estou a dizer que foi. - Michel passou a mão pelo cabelo - Tem os nervos à flor da pele!
- Só quando me irritam.
- Isto não está a correr como pensei. - Murmurou - Vamos mudar de assunto? - Ele não aguardou que lhe responde-se -Porquê um peixe?
- Peixe?

Su, ficou a olhá-lo, mudava de fisionomia e de humor com a mesma facilidade com que mudava de camisa, e de onde saíra o peixe?

- Tem um peixe, porquê? - Ele explicou - Acho que um cão combina mais consigo.
- Bublle! Escolhi um peixe porque não precisam de grandes cuidados. Mesmo assim, já tive seis! Se bem, que adorava ter um cão, mas não tenho tempo para ele...

A conversa continuou com assuntos triviais, ele falou-lhe dos animais que teve quando era criança e ela soltou-se mais. Acabou por revelar que teve um gato mas que morreu atropelado. E contou-lhe que chorou horrores! Ele riu-se e contou sobre um coelho que lhe ofereceram, um dia lembrou-se de o levar ao jardim, nunca mais a viu. Outras recordações foram partilhadas. Su ficou espantada quando olhou e viu que estavam poucas pessoas no estabelecimento. Nem deu pelo tempo passar.

Quando estavam a dirigir-se para a saída, Michel voltou a colocar a mão nas costas dela. Desta vez não se afastou. Estava mais relaxada, era agradável sentir o calor da mão dele. O beijo do sonho veio-lhe à memória, seria igualmente agradável?! No sonho era um beijo suave... sem grandes exigências... Mas ele não parecia ser o tipo de homem que dá beijos suaves... Nem dos que se contentam com uma relação morna... Como a que ela deu a Martim, e daria ao homem que se aproxima-se o suficiente dela. Morna, ou inexistente, foram alguns dos adjectivos que Martim usou para catalogar a relação!
A sua mente divagava, estava bem longe... Tão longe, que não viu que o passeio tinha terminado, felizmente ele agarrou-a pela cintura, evitando a queda.

- Magoou-se?
- Acho que não.

Su olhou-o, algo nos seus olhos a comoveu, sentiu os seus olhos ficarem húmidos. Sentia-se sozinha, nunca iria encontrar alguém com quem partilhar momentos de ternura, de companheirismo. Por muitos amigos que Rita lhe apresenta-se, nenhum quereria passar os seus dias ao lado dela! Baixou a cabeça fingindo olhar o chão, mantinha a mão apoiada no braço dele. Não podia culpar ninguém, ela mesma tinha escolhido afastar todos os homens que se aproximavam. Era mais seguro! Quando sentiu que tinha forças para continuar, olhou-o.

- Podemos ir? Amanhã tenho de...

O pouco espaço que existia entre eles foi reduzido, olharam-se como se quisessem ler a mente um do outro, finalmente as bocas fundiram-se. Não percebeu quem se aproximou primeiro, ela viu-se a responder ao beijo, parecia que a sua boca tinha vida própria. Sinos de alerta tocaram na cabeça dela.  Sabia bem onde aquilo ia acabar...  Michel afastou-se uns milímetros... Su conseguiu ver as suas mãos apoiadas no peito dele, como se toda a vida ali estivessem...

- És mais doce do que eu imaginei. - E voltou a beijá-la.

Não... pára... tens de parar. Repetia-se uma e outra vez. Quando ele afrouxou o beijo ela afastou-o.

- Pare! Solte-me!
- Mas que raio! Podes dizer que se passa contigo?
- Quero ir para casa.
- Então vamos.
- Não! Vou de táxi.
- Não há necessidade, não te vou beijar novamente. Nunca vi mulher mais complicada.
- Complicada?! Até sou bem simples, apenas não quero que me beijem, muito menos, sem que o peça.
- Se me lembro, foi algo simultâneo. Mesmo assim peço desculpas. E não tenho nada contra as mulheres que preferem dar o primeiro passo. Sou paciente, vou  ficar à espera que o dês e me peças.
- O quê?! - O facto de ter respondido, e gostado, do beijo deixou-a confusa, perdeu a noção da conversa.
- Que te beije ou algo mais. Quem sabe.
- Nesse caso, é melhor esperar num sítio confortável. Esse dia nunca vai chegar.
- No teu lugar não tinha tanta certeza.

Fizeram o percurso em silencio, saiu do carro assim que este abrandou junto ao jardim. Quando chegou a casa, Su ficou encostada à porta pelo lado de dentro, o seu coração parecia querer sair do peito.
 De onde tinha vindo aquele beijo?! Que pergunta idiota, de onde veio ela sabia, mas a que propósito?! E porque respondera a ele?! Se conhecia bem os homens, eles têm sempre algo escondido, e ele não era diferente dos demais.
Apanhou o casaco do chão e foi deitar-se, como interpretar aquela situação?! Que ganhava ele com isto?! E ela?! Porque permitiu que derruba-se a parede que tinha construído?! E porque sentira coisas que desconhecia?! As perguntas bailaram na sua cabeça por algumas horas, era madrugada quando conseguiu adormecer.
Na manhã seguinte doía-lhe a cabeça, consequência da noite mal dormida. O dia iria parecer interminável.
E foi, assim como os três que se seguiram.


Su ajudava Tim e Dean, a fazer um puzzle. Gostava de poder voltar a ser criança, poder estar no colo da avó... Nessa altura não tinha tantos problemas.

- Deixa de sonhar e vai falar com a directora. - Rita sussurrou-lhe ao ouvido.- Ao menos era com um homem?
- O quê?
- O sonho...
- Não. - Rita era um amor, mas quando se metia a casamenteira, não havia paciência. - Vou ver a directora. Olhas aqui por eles?
- Claro.

Que queria a directora? Iria despedi-la? Faltavam três meses para terminar o seu contrato. Esperava que não fosse isso... Mas só podia ser, que outro motivo a directora teria para falar com ela? Respirou fundo antes de bater à porta.

- Entra. - A voz rouca da directora, intimidava qualquer um que desconhece-se a razão dessa rouquidão, uma grave infecção deixara-lhe essa recordação.
- Com licença, mandou chamar-me?
- Senta-te Su. Sabes que gostamos de te ter aqui.

Su sentiu que lhe retiravam o tapete debaixo dos pés. Sempre a ia despedir.

- Eu também gosto muito de aqui trabalhar, de estar com as crianças...
- Por isso te mandei chamar. Bem, vou ser directa. O meu sobrinho, tu conheces, o advogado?! - Su anuiu com a cabeça, tinha-o visto uma ou duas vezes, gordo com um bigode farfalhudo...  - Ele precisa de uma ama. Perguntou-me se sabia de alguém, lembrei-me de ti. Ainda és da velha guarda, tens valores. Sei que posso contar contigo. Não foges dos problemas ao primeiro sinal.- Su via mexer na sua pasta - Estive a confirmar, o teu contrato está a terminar, e és a que mais aptidões tem, adoras estar com os mais pequenos, além de que não tens ninguém que te prenda. O que favorece o trabalho, que consiste em cuidar de uma criança pequena, apenas e só, uma criança.
- Apenas uma?
- Serias uma espécie de mãe. Sabes como são os homens, estão sozinhos com os filhos e começam a estragá-los com mimos.
- E a esposa do seu sobrinho? Ela não...
- Não lhe fales nela! Foi um divorcio doloroso, e mesmo que estivessem juntos, ela não gosta de crianças. - A directora revirou a vista -  Como estava a dizer, é preciso alguém que possa ser firme, mas ao mesmo tempo amorosa. Qualidades que tens na medida certa. Logicamente ficarias como interna, terias um dia de folga de quinze em quinze dias. - A directora levantou a mão, evitando que Su a interrompe-se - Sim, eu sei. É pouco, mas o ordenado compensa. E se vires bem as coisas, cuidar de uma criança, é fácil, comparando com o que fazes aqui, estarias de férias constantemente.
- E por quanto tempo?
- É melhor falares com o meu sobrinho, sobre isso e sobre a folga, caso aceites.
- E tenho de decidir agora?
- Ele tem uma certa urgência.Se fosse possível decidires agora, ou até ao fim do dia... Ficarei eternamente grata se aceitares,  e nesse caso, quando terminares, se quiseres voltar, basta dizeres, o teu lugar estará sempre disponível.
- Se não se importa queria pensar um pouco.
- Claro.
- Antes de sair dou-lhe uma resposta.

Afinal não a tinha despedido, e a proposta era aliciante. Reviu mentalmente as suas despesas, o dinheiro fazia-lhe falta, como a avó não tinha casa própria, quando esta faleceu deram-lhe a escolher, comprava a casa ou saía, como morou ali toda a sua vida e estavam a vendê-la por um preço muito mais baixo que o do mercado, acabou por ficar com a casa, foi um bom negocio, mas mesmo entregando todas as poupanças, ainda lhe faltavam 10 anos para pagar. O lado económico era excelente mas, como se daria com o sobrinho da directora? À primeira vista parecia-lhe simpático, não lhe parecia o tipo de homem que se atira para cima das mulheres, nem aproveita qualquer ocasião para as beijar! A fraca alusão àquela noite, foi o suficiente para que se decidisse. Ia aceitar. Assim, não corria o risco de voltar a cruzar-se com ele.

Antes de sair foi dizer à directora, esta ficou feliz, e agradeceu por aceitar. Guardou a morada e o número de telemóvel no bolso e foi para casa.
Estava cansada, sentou-se no sofá a ver Bublle a andar de um lado para o outro no aquário. Apanhou um livro, mas não conseguia concentrar-se, revia o beijo vezes sem fim. Continuava sem perceber como a sua boca parecia mais certa que ela, sobre o que devia fazer. Martim dizia-lhe, abre a boca, assim não...menos...mais... Nesses anos todos, nunca conseguiu acertar na medida certa!


Mexeu-se na cadeira, uma dor percorreu a sua coluna, definitivamente, dormir no sofá não era bom para as costas.  Estava toda dorida! Se demora-se muito, a ser recebida, tinha de começar a andar pelo escritório!

- O Dr. vai recebê-la agora. - A eficiente secretária abriu-lhe a porta
- Com licença - Su retribuiu o sorriso à secretária
- Menina Trent, peço desculpa pela demora. Faça favor de se sentar.
- Obrigada.
- Penso que a minha tia a colocou ao corrente. Como pode compreender não lhe disse tudo, apenas o essencial para que me pudesse ajudar, e já disse mais do que devia, mas confio na minha tia, ela sabe ser discreta. O mesmo se exige de si. Posso contar consigo?
- Claro. - Su ajeitou-se na cadeira.
- Para poupar-mos tempo, pois ele é dinheiro, que lhe disse a minha tia?
- A sua tia disse que precisa de uma ama, para cuidar de uma criança.
- Sim. Uma presença feminina é muito importante para uma criança. Um pai também, mas uma mãe... A mãe é a base, na falta desta, que é o caso, precisa de alguém que lhe incute valores e lhe dê a segurança que precisa para ser feliz. Tem plena consciência que depois de assinar o contrato, e após os quinze dias de experiência, não pode voltar atrás, sem que seja financeiramente prejudicada?
- Isso a sua tia não me disse, mas sei que a lei é assim.
-Espero que não seja um problema, é a única cláusula que este contrato tem, e visa salvaguardar os sentimentos da criança - Entregou a Su o contrato - Se estiver de acordo assine. Apenas tento assegurar que não vai abandonar-nos ao mínimo problema, quando disse que ele precisava de uma presença feminina, referia-me a uma presença constante. Claro, que se houver algo que justifique a sua saída, seremos flexíveis, e podemos chegar a um acordo. Vou deixá-la para que possa ler em sossego. Volto já.

Vince, assim se chamava ele, deixou-a sozinha. Leu o contrato, estava bastante explicito, todas as situações imagináveis estavam ali integradas, era livre de sair quando e onde quisesse desde que leva-se o menino com ela, a sua função era única e exclusivamente cuidar do filho dele! E a julgar pelo ordenado, não olhava a meios para providenciar a tal segurança e estabilidade ao filho. O dia de folga era a combinar antecipadamente, sendo flexível. Caso, quisesse abandonar o emprego teria de indemnizá-lo! Que coisa... Mas enfim, não fazia ideia de o abandonar.  Apanhou a caneta que estava em cima da secretária e assinou. Vince entrou nesse instante.

- Estou a ver que lhe agradam as condições. Ainda bem, fico muito feliz. Deixe-me assinar também. Não falamos sobre a sua ida lá para casa, a menina concorda em deixar a sua casa?
- Sim, a sua tia quando me falou no assunto deixou isso muito claro.
- Óptimo. Sendo assim espero por si amanhã.
- Amanhã?! Mas pensei que, era para começar quando termina-se o meu contrato.
- Não se preocupe com isso, eu resolvo tudo. A minha secretária dá-lhe a morada, vemos-nos amanhã ás 8. Parece-lhe bem?
- Sim. Pensava ter mais tempo para tratar de tudo. Mas, sim. Ás oito lá estarei. Até amanhã Dr.
- Vince. Insisto. Até amanhã Su.

Aquele emprego tinha caído do céu, com um ordenado tão avultado, e sem despesas, conseguia pagar a casa em metade do tempo.
Parou no cemitério, como ia começar no dia seguinte, foi visitar a campa da avó. Subitamente um vulto formou-se à sua frente. Michel! Que estava a fazer ali? Entrou na pequena capela, não queria cruzar-se com ele. Viu afastar-se com um ramo de flores secas, parecia realmente abalado. Estava curiosa, Rita tinha contado que a mãe dele tinha sido sepultada na sua terra natal, em França. Dirigiu-se à campa. era de um casal de jovens! Partiram tão novos, ela tinha apenas 32 anos e ele 35! Seria o seu amigo e a esposa? Os pais do bebé que ele se negou a criar? Os seus olhos encheram-se de lágrimas ao pensar naquele pobre bebé, só neste mundo.
Foi até à campa da avó, enquanto arranjava as flores que comprou, contou à avó o que se tinha passado nestes dias, falar ajudava-a a ultrapassar as saudades.

- Já viste? Ama. Agora sou ama. E de um advogado! Em poucos anos vou conseguir pagar a casa. Agora não vou poder vir tantas vezes, mas prometo vir quando puder. Bem, vou fazer as malas, tenho de ir morar com eles!

Depois de fazer a sua mala, arrumou as coisas de Bublle, Rita ficaria com ele. No dia seguinte começava uma nova vida, a amiga achou que estava doida, o ordenado não compensava o facto de começar a viver como uma freira. Se fosse apenas uns dias... Tinha comentado Rita. A ela não lhe importava, de qualquer das formas, raramente saía. Depois do beijo de Michel duvidava, e muito, que volta-se a sair. Tinha de voltar a erguer a muralha, isto se quisesse salvar o seu coração.

Vince, esperava por ela na entrada. Desculpando-se pela falta de tempo, mostrou-lhe a casa rapidamente e apresentou-lhe Timy que dormia calmamente. Era adorável! Vince deixou-a a arrumar as suas coisas e foi trabalhar. Depressa se afeiçoou a Timy, era um bebé muito calmo, o problema era comer! Não queria a sopa. Quem cuida de uma criança, até aos nove meses, sem incluir a sopa na alimentação? Tinha uma longa batalha, mas venceria . Com um jardim tão grande, raramente saiam de casa, apenas saiam quando o sol brilhava, aí, iam até ao parque, para ele conviver com outras crianças. Su tinha pena dele, raramente via o pai, este, mesmo com um escritório em casa,geralmente passava os dias no escritório na cidade, e raramente vinha jantar. Não era de estranhar a esposa ter pedido o divorcio.

Fazia três semanas que estava a trabalhar para ele, ás vezes aborrecia-se, principalmente quando Timy dormia. Foi relativamente fácil incutir rotinas a Timy, e já as cumpria praticamente todas, a excepção era acordar a meio da madrugada. Adormecia pouco depois, ao contrário dela que demorava a adormecer.
Numa dessas madrugadas estava à janela do quarto, quando um táxi parou à porta, Vince entrou nele instantes depois, levava uma mala. Talvez uma viagem de negócios, como era madrugada, talvez não a quisesse incomodar. Ele telefonaria quando acha-se oportuno. Foi verificar Timy e voltou para a cama. Lá fora, começava a chover, a chuva lembrou-lhe o pequeno acidente e mais uma vez Michel, veio à sua memória, assim como o beijo. Ainda se lembrava do sabor dos lábios dele, quentes e exigentes. Ultimamente pensava constantemente nele, e principalmente no beijo...
Levantou-se bruscamente, não tinha aprendido? Queria o quê? Mais um, para lhe dizer que é um zero como amante?! Não. Não precisava. Vestiu-se e desceu para fazer café, as mulheres da limpeza só chegavam ás nove e a cozinheira ás onze. Sentou-se a olhar a enorme cozinha, se ela tivesse uma cozinha daquelas...

A chuva aumentava de intensidade, hoje não podia sair com Timy. O dia não demorava a nascer, portanto não valia a pena voltar para a cama, tentou lembrar-se de onde tinha deixado o livro que estava a ler. No dia anterior, tinha estado na biblioteca. Abriu a porta e ficou de boca aberta, Michel estava ali! E olhava para ela como se visse um fantasma.

- Que estás aqui a fazer?! - Michel largou a caneta e a agenda.
- Estou a trabalhar. E tu?
- Eu estou na minha casa.

Algo no sorriso dele a fez pensar que a situação lhe agradava.

- Vince sabe que estás... Tua casa?
- Sim.
- Mas Vince... - Ela não conseguia raciocinar. - Ele...eu...
- Quando acabares de balbuciar, podes tentar explicar.
- Eu... - Sentou-se na cadeira mais próxima. - A casa é tua?
- Sim, já o disse.
- Mas eu vim, trabalhar para Vince, cuidar do filho dele.

Michel começou a rir, Su irritou-se com isso. Levantou-se e ficou de frente com ele, os seus olhos brilhavam de raiva.

- Estás outra vez com aquele olhar furioso.
- Peço desculpa por ser tão estúpida, mas ainda não percebi.

Su começou a andar de um lado para o outro na sala.

- Pois eu já. Parece que o destino insiste em que nos cruzemos. O filho não é de Vince, é meu.

As pernas de Su tremeram, ameaçando ceder. Dele?!  A sua cabeça começou a queixar-se...

- Teu?!
- Sim.
- Não sabes dizer mais nada?
- Devido ao nosso pequeno historial, até tenho medo de falar, não comeces a dar segundos significados ao que digo. Mas, vou arriscar. Para já, alegra-me ver que retiras-te o você. Espero que não seja dos nervos. Estás muito nervosa, por isso vou ser objectivo. Eu tenho um filho que precisa de uma mãe, e tu estás aqui para suprimir essa falha.
- Que coisa mais fria!
- Por enquanto vamos manter a situação nesta "temperatura". Não reagiste muito bem quando a situação amornou.
- Que queres dizer com isso?
- Quando nos beijámos, porque foi coisa de dois, não de um, não reagiste muito bem. Como te disse nessa altura, sou muito paciente.
- E a mãe do Timy? Que diz ela? Porque deve de ter uma palavra a dizer.
- A mãe dele faleceu. - A voz dele ficou embargada pela dor.
- Sinto muito. Pobre Timy.
- Sim, felizmente ainda é muito pequeno para sentir a falta dos pais. Não chegou a sofrer a dor de perder um ente querido.
- Dos pais não, da mãe. Ou estás a pensar abandoná-lo como... - Calou-se, não lhe dizia respeito se ele se tinha negado a criar o filho do amigo.
- Continua. Como...
- Nada, não tenho nada que ver com isso. Vou ver Timy.

Timy dormia tranquilamente, e ela estava visivelmente abalada. Tinha prometido não o abandonar, mas as coisas tinham-se alterado. Aceitou o trabalho para fugir dele, e agora em vez de ter encontrado a sua torre, acabou por se colocar no covil do lobo! Como livrar-se daquela situação sem sair prejudicada?! Os dias em que podia rescindir o contrato, tinham acabado, agora, se pretendesse despedir-se tinha de indemnizá-lo! E dinheiro, era coisa que não tinha. O que ganhava no infantário, dava apenas para viver e pagar a letra ao banco. As suas poupanças, limitavam-se a uma miserável quantia!
Um relâmpago iluminou o quarto, foi até à janela.
Que fazer?! Vince não lhe dissera que o filho não era dele! Vince! Como não pensou nisso? Ela tinha contrato com Vince, não com ele! Olhou novamente Timy e desceu. Tinha de acabar com isto antes que se afeiçoa-se a Timy de maneira irremediável!

Bateu na porta do escritório, não obteve resposta. Abriu a porta ligeiramente, ele não estava! Tinha saído?!

- Estavas à minha procura?

O homem parecia um fantasma! Não fazia ruído nenhum! Estava atrás dela, encarou-o confiante. Tremia, mas tentou não o demonstrar.

- Sim. Lembrei-me agora de uma coisa. - Su calou-se, ele tinha tomado banho, estive assim tanto tempo com Timy?! Tinha vestido uma t-shirt branca e umas calças pretas, o seu coração disparou. Como podia ser tão sensual?! Os sinos tocaram na sua cabeça em sinal de alarme. Levou a mão à cabeça.
- Estás com enxaqueca?! Tens de ir ao médico.
- Já fui. E não foi para falar da minha enxaqueca que vim.
- Então diz lá do que te lembras-te.
- Quero rescindir o meu contrato.
- E porque motivo?
- Concordei em trabalhar para Vince, não para ti.
- Vince é o meu advogado, e meu representante legal. - Informou - Tive de me ausentar, e este assunto era urgente.
- Isso quer dizer que...
- Que vais ter de trabalhar para mim. E convém que recordes as clausulas do contrato. Todas e cada uma delas.
- Posso ir se assim  entender.
- Claro. Desde que estejas disposta a responsabilizar-te pelas consequências.
- És um...

Su foi para o quarto, começou a meter as suas coisas na mala. Não estava disposta a viver debaixo do mesmo tecto que ele. Meteu a mala junto à porta, viu-se no espelho, estava uma lástima... nem se tinha lavado. Mas que importava?! O choro de Timy chamou a sua atenção. Esquecera a pessoa mais importante no meio desta situação toda. Pegou-o ao colo, o menino sorriu ao vê-la. Deu-lhe banho, Timy adorava estar na água, chapinhava imenso o que acabava por a deixar encharcada, ela cantava para ele e ele sorria. Agasalhou-o na toalha e aconchegou-o no colo, as mãozinhas dele tocaram a sua cara, o que a deixou derretida. Como abandonar aquela criatura?! Como deixar uma criança tão amorosa, que se vira privada da mãe?!  Mãe! Sempre sonhou ter filhos seus... Infelizmente nunca os teria, à muito que tinha abandonado a ideia, canalizara os sonhos para o facto de cuidar dos filhos dos demais, e isso seria o mais parecido com um filho que ela teria. Sentiu as lágrimas caírem... com a vista meio turva, colocou-o no móvel muda fraldas e deu-lhe um beijo na bochecha. Começou a vesti-lo.

- Tens coragem de o deixar?

Estremeceu ao ouvir Michel, não queria que ele a visse assim. Estava a pontos de chorar. Apenas abanou a cabeça negando. Timy gesticulava imenso, e a resmunguice da fome começou .

- Já está quase. - Tentou falar o mais normalmente possível. - Só falta...

Calou-se ao sentir a mão dele no seu rosto, voltando-a para ele.

- Estives-te a chorar?!  É por te veres obrigada a trabalhares para mim?
- Não... Apenas... Deixa, esquece. Tens razão, não posso abandoná-lo, não seria capaz de o deixar, não agora, que ele ficou privado da mãe.
- Foi isso que pensei quando aceitei adoptá-lo. - Timy tinha agarrado um dedo dele e fazia força para o puxar. - A vida é mesmo assim.
- Adoptá-lo?!
- Sim. Não queres ir vestir-te?! Acho que o consigo aguentar entretanto.

Su sentiu as suas faces ficarem quentes perante o olhar que ele lhe deitou. Percebeu nessa altura que estava com a roupa húmida e que esta se colava aos seus peitos, deixando pouco à imaginação.
Esteve para dizer algo mas ele já descia com Timy nos braços.

Durante o banho tentou ordenar os pensamentos, Timy não era filho dele, era adoptado. E parecia gostar mesmo do menino. Aquela imagem dele, não combinava com o que Rita tinha contado. Supostamente era um homem sem coração, pelo menos, ela assim pensava. Mas se ele ficou com o menino porque os jornais diziam o oposto? Acaso este seria outro bebé? Não lhe parecia plausível.

Michel brincava com Timy no sofá, mas o menino estava a ficar impaciente.

- É melhor dar-lhe de comer.
- Queres ajuda?

Su sentou Timy na cadeira dele e começou a fazer a papa. Su olhava disfarçadamente para ele, enquanto ele bebia um café e observava atentamente tudo o que ela fazia.

- Não tens de sair, trabalhar ou algo assim?
- Queres ver-te livre de mim?
- Não, é que... Desculpa.
- Se queres perguntar algo, pergunta. Sê directa. Odeio gente que anda com rodeios. Em todos os aspectos.
- Vou tentar lembrar-me.
- Isso quer dizer que ficas?
- Sim. - Começou a dar a papa a Timy - Porque o adoptas-te?
- Porque era o mais correcto.
- Mais correcto?!
- Um amigo, faleceu e pediu-me que cuida-se dele. Não pensava ser pai, e muito menos tão cedo.
- Então as revistas...
- As revistas! - Ele interrompeu-a - Podemos mudar de assunto?
- Pensei que podia perguntar o que quisesse.
- Sim, mas sempre e quando eu esteja disposto a responder. Ou acaso, eu sou livre de te perguntar o que quiser?
- Claro.
- Então diz-me, porque foges de mim?

A pergunta apanhou-a desprevenida, esperava algo menos intimo. Ele era perspicaz, tinha notado que o evitava.
- Não fujo. - Su agradeceu por Timy ter terminado de comer, e assim ter uma desculpa para se levantar e sair do campo de visão dele.
- Não?! Um dia vou confirmar isso.

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