sábado, 12 de novembro de 2016

MEDO DE AMAR 1ª PARTE




Vinte anos depois, Beatrice Mactide observa a enorme propriedade que agora é sua. A última vez que ali esteve, tinha oito anos, nessa altura, a sua tia, no meio de uma discussão, expulsou o seu pai da propriedade.
A sua mãe, contrariando a irmã, abandonou a família e seguiu o marido. Arrastando-a para a grande cidade.
O mundo que conhecia desapareceu, dando lugar a uma enorme quantidade de prédios, frios. Depois desse dia, o pai proibiu todos os assuntos sobre a herdade, ou a tia. Os poucos laços que existiam resumiam-se a cartas de felicitações nas datas especiais, apenas destinadas a ela e à sua mãe. E inevitavelmente acabavam todos na lareira. A partida da casa que adorava, foi o seu primeiro desgosto, o segundo e mais doloroso, foi a morte da sua mãe, três anos depois. Lembrava-se vagamente da presença da tia, no serviço fúnebre, mas esta optou por se manter à distância. Depois dessa data, nunca mais chegou outra carta. Nem quando se formou!
 Por isso foi um choque, quando os advogados a contactaram com a notícia da sua morte, sentiu-se culpada por não a acompanhar no último adeus, mas já tinham passado vários dias, e sentiu-se ainda pior quando soube que a tinha nomeado sua herdeira!
Agora, além de uma joalharia, onde além de proprietária, era designer da maioria das peças, via-se a braços com uma herdade cheia de cavalos puro sangue.

Que faria com eles?! A última vez que viu um cavalo foi na televisão. Não podia deixar para trás, toda uma vida de esforço e dedicação, para se dedicar à criação de cavalos. Mas precisava de uns dias para descansar, os acontecimentos dos últimos dias a isso obrigavam.
A sua sócia, insistira nisso, tinha desmaiado duas vezes na mesma semana. Os médicos apenas lhe diagnosticaram cansaço.
Ryana atribuiu esse cansaço ao lançamento da nova linha, depois do enorme sucesso que tinha sido a última colecção, esperava-se muito mais desta. Bea sabia que era muita pressão, mas também sabia que não era isso que lhe tirava o sono, e consequentemente a deixava exausta. Tinha a esperança que estes dias no campo a ajudassem a ver as coisas com mais claridade.

O carro arrancou, fazendo saltar gravilha por todo o lado. À medida que a grande casa se aproximava, o seu coração aumentava de ritmo. Estar ali, trazia-lhe muitas recordações.

Os cavalos passeavam livremente nas cercas adjacentes ao celeiro. Nada tinha mudado, a casa senhorial pintada de branco era digna de um quadro, onde o grande lago, que ficava nas traseiras, seria o protagonista da pintura.  Alguns homens trabalhavam a terra ao lado. Sabiam da sua chegada e estariam à espera dela?! Certamente queriam respostas. Se ela estivesse no lugar deles, queria saber o que o futuro lhe reservava. Mas como responder-lhes se ainda não tinha decidido que fazer? Independentemente da sua decisão, tinha de lhes dizer algo.

A ideia de sair e falar com eles, foi gorada por um enorme cão, que ladrando ferozmente, avançou para ela, quando tentou abrir a porta do carro.

- Calma rapaz! Ou serás rapariga?! Calma, não te vou fazer mal!

O cão retrocedeu uns passos, e ela voltou a tentar sair,  o que se revelou um erro. O animal voltou a avançar sobre ela.

- Bem, uma coisa é certa. A casa está bem guardada. Mas se não me deixas entrar, não comes.

Bea falava com voz firme mas estava a tremer por dentro, lembrou-se que os animais sentem o medo. Tentou acalmar-se, lembrou-se da sandes de carne assada que comprou no caminho, mas que não comera. Valia a pena tentar. Procurou o saco, que tinha deslizado para junto da porta do passageiro. Ali estava ela! Tirou-lhe o papel e cortou um pedaço.

- Olha o que tenho! Queres?!

O animal ao sentir o cheiro da carne acalmou-se, pouco a pouco foi-se aproximando, Bea abriu o vidro completamente e deu-lhe o pedaço, que ele devorou em segundos.

- Ena, quanta fome! Queres mais?! Para isso, vais ter de me deixar sair.

Bea agitava a sandes no ar, ao mesmo tempo que abria a porta com calma, o animal avançou uns passos. Ela meteu as pernas fora do carro, rezando para que ele não lhe morde-se. Para sua surpresa ele cheirou-a  e sentou-se junto às suas pernas olhando para a sandes.

- Queres mais?! Toma...
- Bing. Larga. Aqui.

Bing, desobedecendo à primeira ordem, engoliu a sandes e foi na direcção da voz, ela seguiu-o com o olhar. A distância e o sol que lhe batia nos olhos, reduzia a sua visibilidade, apenas percebeu que era um homem alto, e estava parado à porta do celeiro. Não queria acreditar! Ele assistira à cena e não fizera nada?!
Mantendo a mão sobre os olhos, caminhou na direcção dele.  Certamente não iria incitar o animal contra ela! Isso seria uma barbaridade!

- Ele chama-se Bing, e você?! Acaso tem nome?! Ou apenas o diz à pessoas que ele decide atacar ?!
- Ficou ofendida. - Ele deitou-lhe um olhar que a fez sentir-se nua -Tenho de reconhecer, Doc desta vez esmerou-se. Mas pode dizer ao seu patrão que não dou informações a jornal nenhum, por muito bonita que seja a repórter.
- Desculpe?!
- O que ouviu! Vamos, desapareça.

Mas que homem mal educado! Se esse era o tipo de homem, que a sua tia tinha a gerir a herdade, a coisa prometia.

- É assim que recebem as pessoas aqui?! As coisas mudaram muito, desde a última vez que aqui estive. Mas vão mudar muito mais, e deixe-me dizer-lhe...  Se você é uma amostra, do tipo de homem que a minha tia tinha ao seu serviço, pode começar a arrumar as suas coisas.

Teve vontade de rir ao ver a expressão de espanto dele, a sua cara passou por várias fases, desde surpreendido ao indignado, acabando no arrogante.

- Desculpe. Eme não... Não esperava...
- O quê?! Uma mulher?!
- Bem, algo do género.
- Algo do género?! Nem vou comentar. Como é mesmo o seu nome?
- Maximillian.
- Maximillian. - Acentuou o nome - Suponho que pode chamar o encarregado da herdade, preciso de falar com ele.
- Está a falar com ele.
- Você?! Não havia ninguém mais experiente?! - Bea acariciou a cabeça de Bing - Sei que és um deles Bing, mas, como és tão bom cão de guarda, vais ficar, mas terás que me ajudar, há demasiados machos nesta herdade! Resta ver se são necessários.
- Bing é uma menina. E a sua tia confiava nos "machos" que tinha ao seu serviço.
-  Vou verificar se a confiança se justifica. - Percebeu que ele não gostou de ser rotulado de macho,ela também não gostou da maneira como a olhou - Importa-se de pedir a todos que se reúnam comigo no escritório?! Digamos, em meia hora?! Suponho que é no mesmo sítio. - Bea viu-o assentir com a cabeça.
- Vou cuidar disso.
- Obrigada.

Bea manteve-lhe o olhar por uns instantes, agora com o sol nas suas costas, podia observar melhor a fisionomia dele. Era alto, mais alto que ela, uns bons dez centímetros, os olhos oscilavam entre o verde e o castanho. A camisa aos quadros azuis e brancos parecia feita à medida assim como as calças de ganga que se agarravam às pernas firmes. Com o chapéu à cowboy a tapar os cabelos negros parecia um verdadeiro vaqueiro. Sim, aquele era o tipo de homem que causaria muitos problemas a uma mulher, se ela permitisse. Sabia bem o que acontece quando uma mulher se entrega de corpo e alma a um homem. É sugada por ele, a pontos de deixar de ser ela mesma. Viu o que a sua mãe sofreu por amar o seu pai. Sem vida própria, era apenas uma sombra dele...
Por isso ele escolhera César, não tinham um namoro excitante, nem suspirava pelos beijos dele, mas gostava da sua vida assim, calma, controlada. Bastava-lhe alguém com quem descarregar a tensão sexual, mas ultimamente algo tinha mudado, sentia que isso não lhe chegava, e tinha medo de se cansar de César, acabar como a mãe,  nos braços do seu pai, que foi sugando a vida dela, até que...

Bing ladrou a seus pés.

- Tens razão Bing, devo esquecer...  E temos de te mudar o nome, Bing! Que nome para uma menina.

Bea entrou em casa, estava tudo nos mesmos sítios. O enorme espelho ainda ocupava a parede da entrada. Os sofás que já tinham visto melhores dias, a velha estante com os livros que eram da bisavó, a lareira com as fotos da família... Apanhou uma da mãe e da tia, o sorriso iluminava o rosto da sua mãe, aqui, ainda tinha vontade de viver, não conseguiu evitar emocionar-se. Colocou a moldura no sítio, não era altura para se emocionar.  Olhou em redor, a  porta do escritório estava entreaberta, tinha a sensação que a tia a qualquer altura saía por ela, gritando com o seu pai. A casa tinha demasiados fantasmas. No dia seguinte começava a fazer uma selecção, havia coisas que deviam desaparecer.
Respirou fundo e entrou no escritório, os dossiers amontoavam-se desordenadamente, na secretária e nas prateleiras.

- Meus Deus! Quanta confusão, mas quem consegue trabalhar assim?!
- A sua tia menina.

Bea conhecia aquela voz.

- Não acredito!
- Não vai dar um abraço à velha Mima?!
- Oh Mima! Desculpa... - Bea abraçou a velha senhora - Ainda está por cá, pensei... Pensei...
- Que já tivesse partido?!
- Sim, passou tanto tempo...
- Demasiado, menina, demasiado. Como está linda! E como senti a sua falta.
- E eu de si.
- Oh, aposto que mais dos meus cozinhados.
- Também. - Bea sorriu - Principalmente dos bolos.
- Vou fazer um, em sua honra.
- De chocolate?
- O seu preferido. - Mima afastou-se em direcção à cozinha - A sua tia sentiu muito a vossa falta. Da sua mãezinha e da menina. Quando puder, queria falar consigo.
- Algum problema?
- Vou deixar a herdade, e quero partir de consciência tranquila.
- Vai partir?!
- Já estou velha menina, quero acabar os meus dias junto da minha irmã.
- Claro, tem todo o direito.

Conhecia Mima desde sempre, e sempre, a recordava assim. Com o cabelo preso, vestida de preto, desde a morte do marido, mas sorrindo para todo mundo. Mas os anos encarregaram-se de apagar o seu sorriso.

- A menina mandou chamar?! - Um homem de meia idade, tapava a porta.
- Sim, pode entrar.
- Obrigada.

Procurou entre os dossiers, algum que indicasse que era ali, que estavam as identificações dos empregados. Mas nada!

- Bem, como acabei de chegar, e ainda não me ambientei, enquanto esperamos os demais, pode ajudar-me a fazer uma lista das pessoas que trabalham aqui?
- Sim menina.

Bea, anotou num bloco os nomes de todos, e qual a sua função. Poucos minutos depois, estavam todos presentes. Não eram muitos, vinte homens, incluindo Maximilian.
Começou por dizer que a herança foi uma surpresa, e como tal ainda não tinha decidido o que fazer. Mas, independentemente da decisão, eles seriam avisados com tempo e indemnizados caso decidisse vender.
Depois da mini reunião, que causou algum burburinho, os homens voltaram aos seus afazeres. Essa era uma parte que teria de aprender, designar as tarefas.  Felizmente eles sabiam o que tinham de fazer!

- Maximillian! - Bea chamou-o - Preciso que me elucide sobre a herdade.
- Quando a patroa quiser.
- Maximillian, isso é que não. - Não gostou da maneira como ele a tratou - Não me chame patroa!
- E como a devo chamar?! Meninas?! Senhora?!
- Bea. Não chamava Eme à minha tia?
- Conhecia a sua tia. Não é bem a mesma coisa.
- Ora essa! Nenhum dos meus colaboradores me chama de patroa! Insisto em que me chame de Bea, ou Beatrice.
- O seu namorado, não vai pensar coisas que não são?
- O meu namorado?! - Como sabia que tinha namorado?! - Não é do feitio dele meter-se no meu trabalho.
- Eu não permitiria, que a minha namorada tivesse liberdades com outro homem.
- Tratar-me pelo nome não é o mesmo que tomar liberdades, se fosse o oposto, seria considerado liberdade?
- Não era a mesma coisa...
- Claro que não! - Ironizou, como é que um homem jovem podia pensar assim?! - Bem, vamos concentrar-nos no trabalho. Ou tem algo que fazer agora?
- Tenho de ir ver como estão as crias.
- Crias?!
- Nasceram algumas esta semana, estão no pasto sul.
- Então vou consigo.
- Se assim o entender - Ele sorriu e Bea irritou-se com o sorriso dele
- Pode dizer-me ao que acha piada?! Sei que as crias estão com as mães, até terem força suficiente para serem separadas. Não nasci na cidade, nasci e cresci aqui. Sei algumas coisas, básicas, mas sei.
- Apenas pensava na sua roupa. Não quer mudar ?! Essas calças brancas não são o melhor vestuário.
- Certamente terá muitas preocupações, mas as minhas calças não fazem parte delas! Vamos?!
- Estou mesmo atrás de si. Beatrice.

Arrepiou-se ao ouvi-lo dizer o nome dela, pensou que a trataria por Bea, como todos, apenas o pai a chamava assim. E lembrar o pai, deixava-a triste. As memorias eram todas de dor e tristeza. Não gostava de pensar nisso.

- Bea. Não volte a chamar-me assim.
- Pensei que podia escolher.

Ele irritava-a, já tinha percebido isso, apenas não percebeu o porquê. Talvez porque ele a tratava com hostilidade! Maximillian acelerou o passo, e ela quase teve de correr para o acompanhar. Viu-o selar dois cavalos e trazer até ela um castanho. À muito que não andava a cavalo. Esperava não fazer má figura diante dele. Não que se importasse com o que ele pensava dela, apenas não queria ser motivo de gozo na herdade. O animal era calmo e deixou-se montar sem dificuldades. Felizmente ainda sabia andar  a cavalo, o pequeno passeio ao redor da herdade, acabou por trazer-lhe boas recordações. Recordações de quando galopava pelo campo, sem preocupações ao lado da tia, ela insistiu para que aprende-se a andar a cavalo. Tinham uma relação muito próxima, por isso lhe custou tanto partir para a cidade. Uma lágrima deslizou pela sua face corada, lágrima que ela se apressou a limpar.
Os potros passeavam com as éguas calmamente. Ficou sentada na cerca, como fazia em criança, a vê-lo andar no meio dos animais. Sabia que tinham de verificar se estava tudo em ordem, se todos comiam devidamente, se alguma égua estava em trabalho de parto, e a julgar pelas barrigas, três delas estavam quase a ter cria. Eme deixara a herdade bem entregue a ele, Maximillian sabia o que fazia, tinha de reconhecer.
De volta a casa, ele mostrou-lhe a parte da herdade, onde tinha decidido semear feno. Teve de concordar com ele, era uma boa ideia. A herdade era enorme, e podia ser melhor aproveitada, sim, ele tinha boas ideias, talvez devesse sentar-se e falar com ele sobre isso. Ela podia ter o dinheiro mas ele percebia de tudo aquilo mais que ela.

O cheiro do bolo enchia a casa, Mima esperava por ela na cozinha com um bule de chá preparado.

- Sirvo-o na sala?
- Mima, sabes que adoro estar aqui. Não mudei assim tanto.
- Cresceu menina, e a vida é cruel. Faz-nos mudar, ficar mais amargos.
- Mas à coisas que não têm de mudar. Assim como o teu bolo.
- Tenho de lhe dizer uma coisa.
- Sabia que este bolo tinha algo escondido.
- Prometi à sua tia não lhe contar, mas vou deixar a herdade, e a menina já não é uma criança...
- Mima...
- O seu pai, como está?
- O meu pai?! - Não percebia a preocupação com ele - Acho que está bem.
- Acha?! Não está a morar com ele?
- À muito que vivo sozinha. Mas a que vem esta conversa sobre o meu pai?
- Eu prometi, mas acho que a menina precisa saber. Estou velha, e apenas eu sei o que se passou, e não queria partir sem que a menina soubesse o pai que tem. Certamente ele encheu-lhe a cabeça com mentiras...
- Mima, importas-te de dizer de uma vez?!
- A sua tia expulsou o seu pai...- Mima fez uma pausa  - Porque ele tentou algo mais com ela.
- Como?! - Bea estava horrorizada -Não acredito!
- Nem eu acreditaria menina, mas vi com estes dois que a terra irá comer! Fui eu que a socorri. Ela chorava, e ele não a largava. Imagino que deve de ser difícil acreditar...
- Sei que ele teve outras mulheres, mas a minha tia?! Nunca imaginei que ele descesse tão baixo.
- Acho que foi porque a sua tia o enfrentou, disse-lhe que se não parasse de procurar outras mulheres, que o expulsaria daqui. A irmã não merecia o que ele lhe estava a fazer. E ele disse-lhe, se não queria que ele procura-se outras mulheres na cidade, ela teria de lhe dar o que a mulher não lhe dava. E foi aí que tudo começou...
- Meu Deus, ainda é pior do que eu pensei! À muito que não o vejo, sei o que ele fez à minha mãe. Mas isto?! A minha mãe sabia?
- Penso que não. Mas não posso ter a certeza. A sua tia preferia que tivessem ficado, ela teria ajudado na sua educação, mas a sua mãe não quis.
- Eu sei, o meu pai era tudo para ela. Vivia para ele, ela perdoava tudo o que ele fizesse. Sei que isso acabou com ela. Vi-a definhar dia a dia. Mas, porque me conta isso agora?
- Não podia partir assim, e deixar que a menina culpa-se a sua tia da vossa partida. Ela fez o que achou melhor, era uma mulher forte, uma lutadora.
- Ao contrário da minha mãe.
- Duas rosas da mesma roseira e tão distintas uma da outra.

2 comentários:

  1. Mais uma história que se prevê cheia de emoções
    Adorei o que li, obrigada

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    1. Eu é que agradeço :) muito obrigada pela preferência.
      Beijinhos Ana

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