Olhou o relógio do escritório mais uma vez, oito da noite! Apanhou novamente o envelope que Ana lhe tinha dado e confirmou o seu conteúdo.
Após a partida de Richard decidiu passar o dia com Yorin, independentemente de tudo o resto, amava aquela menina como se fosse sua. Ao fim da tarde disse a Carmem que não se importava de ficar com Yorin, caso ela pretendesse sair mais cedo, oferta que Carmem aceitou de bom grado para jantar com umas amigas. Depois de deitar Yorin avisou James que tinha de ir a casa apanhar uns papéis. Pouco depois regressava, com o envelope, decidia a colocar um ponto final naquela relação que a impedia de viver! Teve momentos, de insanidade, em que ponderava esquecer o envelope, amava-o e queria estar com ele. E se ele, ainda que não a amasse, queria estar com ela, ia aproveitar até que a chama do desejo se extingui-se. Mas depois recuperava a razão e sabia que nunca se contentaria com uma relação assim, não estava disposta a ser mais uma na cama dele. Tinha a certeza que partiria com o coração despedaçado, mas não seria a primeira. E se as demais sobreviveram, ela também sobreviveria! Tinha uma família que a adorava e um novo sobrinho a caminho, tudo se resolveria!
Os nervos faziam-na andar de um lado para o outro na sala, perto da meia noite James anunciou que, se ela não precisasse de nada, ia retirar-se. Sentiu pena dele, já devia de estar a dormir e por culpa dela ainda estava a trabalhar! Culpa dela não, o culpado era Richard, por pensar que era uma ladra, por pedir-lhe que esperasse por ele, quando possivelmente estaria nos braços daquela...
- Tinha receio que não esperasses.
Assustou-se ao ouvi-lo, olhou pela janela, o carro dele estava lá fora na entrada. Como não o ouviu chegar?! Estava assim tão absorta nos seus pensamentos?!
Richard atirou o casaco para cima da cadeira e serviu-se de um whisky, sentou-se e recostou a cabeça no sofá de olhos fechados. Parecia-lhe cansado, teve de lutar contra o desejo de correr para ele e abraça-lo até o corpo dele se fundir no seu.
- Disse que esperava.
- Se me lembro, disseste que não sabias. - Ele abriu os olhos e olhou-a antes de beber um gole do liquido castanho claro - Mas fico feliz por ver que esperaste.
- Pensei que não tinha escolha. - Notou que contraía os músculos, mas não podia ceder, tinha de dizer-lhe - O que me leva a uma coisa. Pediram-me para te entregar isto. Antes que tires novas conclusões precipitadas, quero dizer que foi Ana que mo entregou.
- E isto é?!
- Abre. E depois de leres a carta percebes como foste... - Calou-se - Bem, depois percebes como tudo se passou.
- Se não te importas vou ver isso amanhã. Quero descansar, o dia foi esgotante.
- Não! Tem de ser agora! - Olhou-o desafiante - Compreendo que tenhas tido um dia esgotante mas são apenas mais dez minutos.
Richard franziu o sobrolho e abriu o envelope, atirou a carta, sem a ler, para cima do sofá e abriu a caixa, depois olhou para ela, fechou a caixa e colocou-a em cima da mesa.
- Como correu o teu dia? - Richard levantou-se e serviu-se de outro whisky.
- Não vais ler a carta?!
Ela olhava para ele sem quer acreditar na atitude dele, tanta coisa por causa daquela moeda e agora agia como se não fosse importante.
- Não!
- Como não?!
- Não me interessa. - Bebeu o whisky de uma vez.
- Mas interessa-me a mim! - Christina levantou a voz - Sabes tão bem como eu porque estou aqui, obrigaste-me a assinar aquele contrato porque achaste que eu te tinha roubado! Deixaste bem claro que só me livraria de ti, depois de pagar essa maldita moeda ou provar que não a roubei. - Apanhou a carta e estendeu-lha - Tens de ler! Ana explica tudo aquilo por que passou para te devolver a moeda e como foi influenciada por Joss a...
- Joss?! O namorado dela?!
- Sim. - Por momentos ficou animada.
- Ora Christina, até vocês são capazes de melhor! - Ele atirou a carta para cima da mesa e ficou de costas para ela a olhar a rua - Não acredito que Joss influenciasse Ana ou quem quer que fosse.
- Não?! Se visses o estado em que lhe deixou a cara acreditavas!
- Joss?! Agredindo uma mulher?! - Olhou-a por instantes - Como te disse, são capazes de melhor. Joss trabalhou a meu lado por seis anos, eu mesmo vi como ficou furioso quando soube que o marido de Mary a espancava.
- Isso não quer dizer nada!
- Nunca me convencerás que Joss está por detrás disto.
- Muito bem. - Agarrou na carta - Não acreditas, então vou mostrar isto à policia e depois...
- Se fosse a ti ficava sossegada.
- Porquê?! Não fiz nada!
- Tens a certeza?! Que dirão quando souberem que usaste o nome da tua amiga para trabalhares?! Isso é considerado roubo de identidade.
- Nunca fiz isso!
- Não?! - Richard permanecia de costas para ela - Trabalhaste para mim um mês, recebeste um cheque que foi endereçado à tua amiga. Sem esquecer que me esconderam o facto que a tinhas substituído. Que razões tinhas para o fazer e porque ocultaste a tua identidade?! Como ter a certeza que a carta foi escrita por Ana?! Podes ter falsificado a letra dela, ou não?! E porque te apresentaste apenas ao meu pai?! É juiz, mas está velho, não achas que levantará suspeitas?! Sinceramente duvido que te safes com facilidade.
Christina fixou o seu olhar nas costas dele, esperando que a qualquer momento ele se voltasse, mas tal não aconteceu, mantinha-se imóvel olhando a rua. O seu coração batia desesperado, pensando no que ele tinha dito, tinha razão, tudo aquilo era suspeito e com Ana no estrangeiro como provava que a carta era da amiga?! E como provar que Joss tinha agredido Ana?! Se ele defendesse Joss, nunca iriam acreditar na palavra dela. Lágrimas de frustração e raiva começaram a cair . A carta escorregou-lhe da mão, por uns segundos ficou a olhá-la pensando se a devia apanhar, olhou para ele, ainda olhava a rua.
- Odeio-te!
- Lamento que...
Christina não ouviu o que ele lamentava, saiu para a escuridão da noite batendo a porta furiosamente. Caminhou pela avenida alheia ao que a rodeava, alguns carros apitavam, outros abrandavam e fazia convites despropositados, ignorou-os. Naquele momento o que menos a preocupava era o que aquelas pessoas pensavam dela! Um trovão ecoou na noite e sentiu umas gotas de chuva no rosto.
- A sério?! - Olhou o céu por entre as lágrimas - O culminar de um dia perfeito!
Recomeçou o andamento, percebendo que tinha deixado o casaco e a mala em casa de Richard. A raiva tinha abrandado e começava a ter consciência do frio que se fazia sentir e que não tinha como entrar em casa. Esfregou os braços tentando aquecer a pele. Se a menos tivesse o telemóvel...
- Entra!
Olhou o carro que parou a seu lado, era Richard, tinha frio mas preferia morrer congelada que entrar no carro com ele.
- Prefiro ir a pé! - Christina acelerou o passo - Ou até morrer de frio!
- Não sejas criança e entra. Está a chover.
- Acaso achas que não sei?! Vai-te embora, não preciso da tua ajuda.
- Não?!
Christina levantou a cabeça e seguiu em frente, ouviu um bater de portas e depois sentiu um casaco nas suas costas, reconheceu o cheiro dele.
- Pára de ser teimosa e anda comigo.- Richard esfregava-lhe os braços - Estás molhada.
- Mais uma novidade. - Ela lutou contra os desejos que o cheiro e o toque dele lhe despertavam - Se não me vens dizer nada de novo podes ir embora.
- Não posso dizer o que queres. - Ele olhava-a nos olhos que ameaçavam recomeçar a chorar - Não vais chorar novamente.
- Então deixa-me ir. - Christina pediu-lhe, mas o que mais desejava era que ele a levasse para a sua cama e não a deixasse partir nunca mais. - Preciso de...
- Precisas de entrar em calor, estamos os dois a ficar molhados. E ainda que goste das memórias que isso me trás, é melhor irmos para casa.
Christina deixou-se levar até ao carro e sentou-se aconchegando o casaco ao corpo gelado.
- De volta à prisão! - Murmurou.
- Sei que agora me odeias, mas...
- Agora?! - Christina olhou-o quase a chorar - Acho que te vou odiar para sempre!
Richard levantou a mão com tal rapidez, que ela pensou que lhe ia bater e encolheu-se.
- Meu Deus!- Ele olhava incrédulo para ela enquanto lhe desviava uma madeixa de cabelo - Pensaste que te ia bater?!
- É moda não?!
A voz tremia-lhe devido ao contacto da mão no seu pescoço, não podia estar tão perto dele. Não conseguia pensar em nada, apenas nele e no muito que queria estar com ele.
- Seria incapaz de te magoar.
Levou a mão até aos lábios dela e acariciou-os. Perante o contacto ela fechou os olhos e encostou o rosto à mão dele, o calor que lhe transmitia reconfortava-a, gostava de poder ficar ali para sempre. Queria tanto que ele... Deixou de pensar ao sentir o calor dos lábios dele, a sua cabeça dizia para lutar contra ele, mas o seu corpo já se tinha rendido assim como o seu coração.
Três semanas depois já não lutava contra ele, não sabia quando decidiu deixar de lutar. Acordou um dia cansada de lutar contra o que sentia, sabia que estaria presa a ele enquanto ele o pretendesse, restava-lhe esperar que se cansasse dela. Pensou que, diariamente, teria algumas horas para se recompor, mas ele aumentou o seu horário de trabalho, passava o dia todo com ele e muitas vezes tinham de viajar. O contacto mais próximo e constante estava a arrasar com os seus nervos. Os seus pensamentos oscilavam, ora desejando que ele nunca se cansasse dela, ora que o fizesse rapidamente, enquanto ela ainda tinha esperança de, mesmo longe dele, conseguir refazer a sua vida. Em consequência disso dormia mal, as únicas noites que dormia serenamente era as noites que dormia com ele. As duas últimas foram na casa dele e embora se levanta-se cedo, tinha quase a certeza que James sabia do que se passava.
- Ainda temos de ir ao armazém. - Richard meteu uns papéis na pasta - Estás doente?
- Não. - Não se sentia doente, apenas desanimada. - Vamos agora ou mais tarde?
- Agora vamos falar. - Segurou-lhe a mão e foi com ela até ao sofá - Estive a pensar na nossa situação.
- Sim?!
- Podíamos ir uns dias até à casa de campo. Ou visitar os teus pais. Que dizes?!
- Os meus pais?!
- Acho que uns dias longe de tudo te farão bem, precisas descansar. Aliás ambos precisamos! - O telemóvel dele começou a tocar - Desculpa.
Visitar os pais dela?! Como se fossem um casal normal?! Os pais dela iriam imaginar os sinos da igreja a repicar mais rápido que ela! Não, ele não estava a ver a situação bem. E muito menos passar uns dias na casa de campo, era lá que ele se encontrava com as suas amantes. Não, decididamente não iria para lá! Precisava de uns dias mas sozinha, para colocar as ideias em ordem, não com ele para lhas confundir ainda mais, não precisava que ele lhe provasse que a cada dia que passava, estava mais dependente das carícias dele e dos seus beijos. Mas um dia sem o ver era doloroso demais. Não conseguia pensar nisso sem chorar.
- Christina?! Ouviste o que disse?
- Desculpa.
- Estava a dizer que vamos a tua casa para que prepares uma mala com o que aches necessário.
- Não íamos ao armazém?!
- Sim, depois. - Guardou o telemovel - Era o fornecedor, houve um atraso e só vem mais tarde.
- E podes ausentar-te assim?!
- Alguma vantagem terei em ser o dono.
- E Yorin?! - Ela tentava arranjar uma desculpa para não ir. - Não a podes deixar assim.
- Assim, como?!
- Sozinha.
- Não estará sozinha. Mas se preferires podemos levá-la. Estás a arranjar desculpas para não irmos?!
- E tu para não a levares, acho que perder os pais já foi suficiente.
- Tens razão, foi sim. Mas chega de conversa, temos muito que fazer antes de podermos aproveitar uns dias de descanso.
- E onde vamos?!
- Onde quiseres.
Richard colocava a pequena mala na bagageira do carro, enquanto ela se sentava no banco em silêncio. Não sabia que pensar, se por um lado ficava feliz por ficar uns dias a sós com ele, por outro tinha medo de que pudesse estar a alimentar mais ilusões em relação a ele. Talvez o melhor fosse irem para a quinta dos pais, lá não teriam oportunidade de dormirem juntos. A sua mãe não o consentiria, se bem que os pais começariam a idealizar o casamento. Não, era melhor na casa de campo, lá não veriam ninguém e os seus pais não começavam a ter ideias. Sim, era melhor a casa de campo. Mesmo que isso significasse enfrentar os fantasmas das amantes todas! Deixaram a mala dela em casa e antes de irem para o armazém, pediram a Carmem que preparasse uma mala com as coisas de Yorin.
- Tens a certeza que te podes ausentar?
- Podes parar de perguntar isso?! - Richard estava impaciente - Se ao menos tu... - Olhou-a de relance - Esquece. Podes verificar se as reuniões estão reagendadas para a semana?
Não voltaram a falar dos dias que iriam passar juntos, quando chegaram ao escritório principal embrenharam-se no trabalho de tal forma, que quando a secretária perguntou se podia sair, Christina olhou o relógio para confirmar as horas. A tarde passou tão rapidamente, que ela teve de admitir que gostava de trabalhar com ele, nunca se aborrecia, tinha sempre algo novo para aprender. E Richard já lhe tinha atribuído nova tarefa, fotografar as peças para o site.
- Como vamos sair, não tenho tempo de colocar todas no site.
- Quando voltarmos tens tempo de terminar. Ainda tenho de rever os preços de algumas.
O telemóvel tocou e ela fez-lhe sinal para ele saber que ia voltar para o armazém. Sentiu um arrepio ao percorrer o espaço que separava o escritório do armazém. Era noite escura e não se via ninguém na rua em frente, até a pastelaria do outro lado da rua estava com poucos clientes. Do meio da escuridão uma mão puxou-a.
- Sabia que estarias por aqui.
- Joss?! - Ela estremeceu ao recordar o que ele fez a Ana - Que fazes aqui?!
- Venho buscar o que é meu. - Joss segurava-a pelo braço. - A minha moeda?! Onde está?
- Não sei do que falas. - Christina olhava para todos os lados procurando uma forma de escapar - Não a tenho.
- Não te faças de idiota! - Joss torceu-lhe o braço e ela gritou - Se não cooperares vais arrepender-te.
- Solta-me! Não te posso dar o que não tenho.
-Não?! E Ana?! Onde está?!
- Não sei!
- Achas que acredito que aquela estúpida desapareceu e tu não sabes de nada?!
- Acredita no que quiseres.
- Temos chicas espertas!
- Não tenho medo de ti!
- Pois devias! - Joss torceu-lhe o braço novamente.
- Pára! Não tenho a moeda e não sei de Ana.
- Vamos ver se continuas a pensar assim depois de te refrescar a memoria.
A mão pesada de Joss acertou em cheio na face dela, sentiu na boca o sabor do seu próprio sangue enquanto um ardor enorme lhe percorria a cabeça, como se lhe tivessem encostado um ferro em brasa. Sentiu as lágrimas inundarem-lhe os olhos, lembrou-se de Ana. O que não teria sofrido...
- Já te lembras?! - Joss gritava mantendo-a presa por um braço - Ou precisas de mais um incentivo?!
Christina fechou os olhos ao ver a mão de Joss no ar, ouviu o som abafado mas não sentiu a mão no seu rosto. Abriu os olhos quando ouviu o som do caixote do lixo cair.
Levou a mão à boca para limpar o sangue. Richard disferia vários socos em Joss, parando apenas quando Joss caiu deitando sangue pelo nariz. Antes de ir ter com ela Richard olhou o corpo de Joss imóvel no chão.
- Estás bem?! - Richard levou a mão à face dela - Claro que não estás! Porque não...
- Cuidado!
Ela tentou alertar Richard para a recuperação de Joss, mas não foi a tempo. Christina gritou por socorro ao ver um objecto cair na cabeça de Richard, que caiu semi-inconsciente na calçada antes de Joss sair a correr cambaleando.
Voltou a pedir ajuda, lembrou-se que nestes casos as pessoas não devem dormir. Começou a falar com ele enquanto lhe dava pequenas palmadas na face.
- Richard, por favor... - Ela soluçava - Não me faças isto. Não podes... Por favor abre os olhos.
Procurou o telemovel. Tinha a certeza que o tinha mas não o encontrava! Uma rapariga com um cão passou naquele momento e prontificou-se para chamar a ambulância.
- Tens de acordar... por favor...
- Christina?!
Ele abriu os olhos vagarosamente e ela sorriu entre lágrimas. Segurou a mão que ele tentava levantar e beijou-a.
- Não podes dormir... Tens de te manter desperto.
- Desculpa...
- Não digas nada... não...tens de falar... mas por favor não morras.
- Que mais tenho de fazer...
Ele contorceu-se de dor e ela encolheu-se como se a dor fosse dela.
- Oh meu Deus!
- Se me deixares é como se morresse.
A mão que ela segurava pendeu, inanimada, junto ao corpo. As lágrimas corriam sem parar, esqueceu que lhe doía o rosto e deitou-se no peito dele acalmando-se apenas quando sentiu o bater do coração dele.
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