quinta-feira, 16 de março de 2017

ENGANOS 7ª PARTE



À medida que o comboio entrava na estação Christina sentia que todas as dúvidas voltavam, e até as pequenas certezas começavam a fugir-lhe por entre os dedos.
Com o avançar da noite a dificuldade em arranjar um táxi aumentava, aquela zona era conhecida pelos desacatos que os jovens, e alguns menos jovens, provocavam à saída dos bares. O que levava a que muitos taxistas evitassem andar por ali quando anoitecia.
Era naquelas alturas que pensava que em vez de ter investido o pouco que tinha numa casa, devia de ter comprado um carro.

Embora com alguma demora, finalmente chegou a casa. Atirou a mala para cima da cama, arrumou as suas coisas e enquanto a água fervia para fazer chá vestiu uma camisa de dormir.
Com a chávena na mão observou o movimento nocturno, casais que chegavam com os filhos, outros que saíam abraçados, pessoas a passear os cães...
 Olhou o céu, não se lembrava da última vez que viu as estrelas na cidade. Era disso que tinha saudades, de ver a lua e as estrelas. Lá na quinta a lua iluminava os céus todas as noites. Na quinta e na casa de campo.
Deixou cair o corpo cansado em cima da cama. Independentemente do tipo de pensamentos, todos acabavam no mesmo sítio: Richard. Tinha tantas dúvidas... e mais dúvidas ainda em se devia fazer as perguntas necessárias para acabar com essas mesmas dúvidas.

Um som irritante acordou-a, levou algum tempo a perceber que era a sua campainha. Olhou o relógio, uma da manhã! Meio ensonada sentou-se na cama, a campainha tocava insistentemente. Vestindo o roupão dirigiu-se para a sala. O vizinho de cima, um jovem universitário, ás vezes descia para pedir algo, sem pensar na hora que era, nem se os demais estavam a dormir, embora fosse inconveniente simpatizava com ele.

- Espero que seja um incêndio ou algo parecido! - Reclamava quando abriu a porta - Richard?!
- Onde estiveste?

 Richard olhava para ela como se pretende-se adivinhar o que tinha perguntado.

- Não tenho de te informar de tudo o que faço!
- Sabes o quanto me preocupei? - Richard segurou-lhe a mão - Pensei que... Porque desligas-te o telemóvel? Não conseguiram saber onde estavas.
- O telemóvel?! - Olhou para ele - Que queres dizer com não conseguiram?!

Richard caminhou até à janela e ficou em silêncio por algum tempo, depois voltou a segurar a mão dela e acariciou-lhe o pulso.

- Nada disso importa. - Falava calmamente - Quero que saibas que nunca mais te volta a magoar. Tratei disso pessoalmente.
- Mas do que estás a falar?!
- Não compreendo as mulheres. - Ele falava como se ela ali não estivesse - Maltratam-nas e além de continuarem a viver com o agressor, ainda mentem para o desculpar.
- Pelo amor de Deus!  Importas-te de me dizer do que falas?
- Do facto de não admitires que tens alguém e que ele não te faz feliz.
- Não tenho ninguém!
- Eu vi-te com ele e embora o tentasses esconder, também vi o hematoma que te fez.
- Que hematoma?!
- Estou cansado de tentar... - Olhou-a demoradamente - Dorme bem Christina.

Richard deu-lhe um breve beijo no pulso e outro nos lábios antes de sair, fechando a porta atrás de si. Christina sentou-se no sofá pensando na conversa.

Maltratadas! Mentem! Hematoma! Vi-te com ele! As palavras ressoavam na sua cabeça.
Mesmo que junta-se a atitude apática dele à conversa, se de tal pudesse ser chamada, tudo aquilo continuava sem fazer o mínimo sentido para ela. Apagou a luz e regressou para a cama, reviu a conversa uma e outra vez. Quando estava quase a adormecer deu um salto na cama.

- Joss! - Esfregou o pulso - Meu Deus!

Não conseguiu dormir depois de se lembrar disso, só podia ser esse o hematoma que ele falava, mas não podia saber que tinha sido Joss a fazer aquele hematoma. O que suscitava outra duvida. De quem ele falava quando disse que não voltava a magoá-la?!  Mentalmente voltou a rever a conversa. Ele! Mas ele quem?!  Já tinha descartado Joss.
Pensa Christina! Pensa! Ordenou-se.
Richard disse que os tinha visto. Mas tirando ele, ela não saíra com nenhum homem.
Lembrou-se do encontro casual com o seu ex-namorado e da sensação de ouvir a voz de Yorin!
Seria Willie?!
 Pensando bem em tudo o que fez nesse fim de semana, e tendo em conta que só se encontrou com Willie, não restava outra alternativa.
Tinha de ser, sentiu pena dele, com teria reagido à conversa de Richard?! Wiliie era tão calmo, que chegava a rondar o aborrecido, tão desprovido de maldade ou de qualquer outro sentimento menos digno...
Foi esse carácter morno dele que a levou a acordar um dia ao lado dele, questionando-se sobre o que estava ali a fazer. Ele não fez nada para que deixa-se de o amar, ou talvez fosse por isso mesmo, porque nunca fazia nada. Naquele dia simplesmente percebeu que o que sentia por ele não passava de uma amizade. Quando Willie acordou e lho disse não reclamou, nem tentou demove-la do fim da relação. Permaneceu sentado na cama a vê-la vestir-se, como se espera-se aquele dia à muito. Depois desse dia apenas se encontravam ocasionalmente, como dois bons amigos. Pobre Willie!
Antes de apagar a luz e tentar adormecer, mandou-lhe uma mensagem pedindo-lhe que lhe telefona-se.

- Sim?! - Atendeu meio adormecida, mas ao ouvir a voz no outro lado despertou - Willie!
- Olá! Tens tempo para um café?
- Acho que sim. - Olhou o relógio - Sim tenho tempo, mas depois podes deixar-me no trabalho?
- Claro. Passo a apanhar-te em quinze minutos.

Tomou banho e vestiu-se tão depressa que quando Willie tocou à campainha ela já estava pronta. Durante o trajecto falaram do tempo, como se fossem dois estranhos arranjando coragem para uma conversa mais profunda.
Pediram dois cafés e sentaram-se numa mesa afastada.

- Nem sei como abordar o assunto. - Christina rodou a chávena no pires.
- Nem eu com te explicar o que aconteceu. - Willie sorriu meio sem jeito - Foi tudo tão surreal que não contei a ninguém.
- Nem à tua namorada?
- Nem a ela. Eu próprio ainda não acredito que me aconteceu algo assim. Continuo sem perceber o que fiz para ser alvo de tanto ódio!
- Duvido que te possa ajudar nesse sentido.
- É que não entendo onde foi buscar a ideia que te maltratei?! É que apareceu assim, do nada, e depois de confirmar que eu te conhecia. - Willie levou a mão ao pescoço - Agarrou-me pelo pescoço e avisou-me para manter as mãos afastadas de ti. Que se voltasse a ver-te com outro hematoma, por muito pequeno que fosse, ele iria se encarregar pessoalmente de encher o meu corpo deles.
- Não!!!
- Oh sim! E antes de me soltar ainda acrescentou: "E podes crer que terei todo o prazer nisso" - Willie engoliu em seco - Imaginas o que senti?! Nunca na vida vi uma pessoa tão furiosa. Sabes que seria incapaz de te magoar, a ti ou a qualquer pessoa.
- Eu sei. - Christina apertou-lhe a mão.
- Mas deixa que te diga, tens ali um amigo do caraças! - Willie ficou vermelho - Desculpa a linguagem, influências do centro comunitário.
- Centro comunitário?!
- Sim, faço voluntariado. Não desvies a conversa. - Ele forçou um sorriso - Quero esclarecer umas coisas. Podes assegurar-me que ele fez alguma espécie de confusão e não és vitima de maus tratos?! Porque se és, junto-me a ele e vamos dar uma lição a esse canalha!

Ela sorriu perante a ideia dele se juntar a Richard numa cruzada, Richard era capaz disso, se bem que até àquele dia nunca pensou que fosse capaz de resolver as coisas pela força. Mas nunca iria imaginar Willie no papel de defensor de nenhuma dama em apuros.

- Posso assegurar-te que não sou vítima de abusos físicos. E falo com ele hoje mesmo para lhe explicar. Algo mais?!
- Diz-lhe que não precisa de pedir desculpas.

Willie deixou-a perto da casa de Richard, depois de se despedir do amigo rodeou a casa, o jardineiro já devia de estar a trabalhar e a porta de serviço estaria aberta. Mesmo sabendo que não devia de achar piada, ainda não conseguia evitar sorrir ao imaginar a cara de Willie quando sentiu a mão de Richard no seu pescoço.

Entrou pela porta de serviço e foi directamente para o escritório. Abriu a janela e ligou o computador, enquanto este iniciava sessão abriu a porta para ir ver Yorin. Mas não chegou a sair do escritório, uma voz rouca e melosa chegou até ela.

- Richard, sê um querido e ajuda-me aqui com o vestido!

Olhou para o local onde se ouvia a voz, uma ruiva desviava o enorme cabelo com uma mão enquanto Richard subia o fecho do vestido que de tão curto, era mais o que deixava à vista do que o que cobria. A ruiva estava encostada de tal forma a ele, que Christina duvidava que ele tivesse espaço para respirar.
Fechou a porta do escritório sentindo o coração ser dilacerado. Por instantes ficou ali sem reacção, apenas pensando na ruiva encostada ao corpo dele. Nunca imaginou que amar alguém pudesse... Inesperadamente a porta abriu-se e foi contra o seu braço.

- Mas que... - Richard olhava atónito para ela segurando o braço onde a porta embateu e para os olhos banhados em lágrimas. - Meu Deus! Desculpa! Não sabia...
- Não importa. - Sentiu-se aliviada por ter um motivo para as lágrima que não cessavam, sabia agora que o amava. E saber isso doía-lhe mais que o machucado do braço - Isto passa.
- Como passa?! Senta-te e não te mexas daí.

Viu-o sair apressado, recostou a cabeça e fechou os olhos. Como se pôde apaixonar por ele?! Onde e como isso aconteceu?! Como arranjou espaço para o amor entre aquela teia de desconfiança que era o convívio entre eles?!

- Doí-te muito?!

Abriu os olhos, ele estava à sua frente com um pote de creme. Sentou-se ao seu lado e começou a espalhar o creme no braço. As mãos dele eram uma dupla tortura, desejava sentir as mãos dele no seu corpo, desejava que fizesse amor com ela ali, como... Maldito homem!

- Pára! Não me toques! - Odiou-se a si própria, ele tinha acabado de sair da cama que partilhou com aquela ruiva e ela queria estar com ele! - Deixa-me.
- Imagino que seja doloroso e que isto te traga más recordações, mas não...
- Que sabes tu da minha vida?! - Levantou-se e olhou-o por entre as lágrimas - Nada! Não podes imaginar o que é!
- Não. Não posso! - Ele segurou-a pelo outro braço - E baixa a voz! Tenho visitas e não quero que pensem que te estou a maltratar.
- Peço desculpa! - Christina falou ironicamente mas baixou a voz, não por ter medo dele mas porque não queria voltar a ver a ruiva - Está melhor assim?!
- Não. - Ele olhava para ela furioso - Eu prometi a mim mesmo, mas tu tiras-me do sério!

Pensou que ele fosse dizer algo mais, mas ele meteu a mão no seu cabelo e puxou-a suavemente para junto de si.

- Se tu...

Richard não acabou de falar, beijou-a com alguma urgência e agarrou-a pela cintura apertando-a contra o corpo dele, de tal forma que ela podia sentir os músculos dele, relaxarem à medida que ela se entregava ao inesperado beijo.

- Richard!? - A voz melosa voltou-se a ouvir. - Querido!?

Ele afastou-se um pouco, mas permaneceu com a cabeça encostada à dela.

- Tenho de sair, mas volto rápido.

Beijou-a novamente antes de sair. Christina ficou ali sentindo as lágrimas caírem pelo seu rosto. Fechou a porta e deixou o corpo deslizar até ficar sentada, chorou encostada a ela, consciente em que se a ruiva não o chama-se, ela não teria o mínimo problema em fazer amor com ele.  Porque tinha de ser assim?!  Porque não se apaixonou por um homem bom ?!

Richard regressou pouco depois, na sua ausência um dos fornecedores exigira a sua atenção. Ela já tinha a ficha de encomenda aberta e Richard  falava com ele quando o seu telemóvel se iluminou.
Olhou para ele, não voltou a iluminar-se, sinal que era mensagem. Richard olhou para o telemóvel e deu-lho com o sobrolho carregado.
Era de um numero anónimo, a curta mensagem brilhava no ecrã.

" Baby, espero por ti à mesma hora e no sítio de sempre. Desculpa. Beijos love you."

Ficou a olhar a mensagem por uns instantes. Ana! À muito que não a chamava assim. A amiga começou a chamar-lhe Baby porque a achava pura e inocente como um bébé. Mas só a tratava por esse nome quando terminava com os namorados. Algo tinha acontecido, tinha de ir ter com ela, e se queria chegar a tempo tinha de sair já.
Olhou para Richard, ainda falava ao telemóvel. Apanhou uma folha e escreveu: Tenho de sair, volto  assim que puder.
Agarrou a mala e saiu sem olhar para ele.

A pastelaria estava quase deserta, aquele lugar trazia-lhe tantas recordações. A dona já não era a mesma, mas a decoração ainda era a mesma dos tempos de escola, os mesmos quadros dos anos sessenta, a mesma music box, apenas as mesas, rodeadas por dois sofás pequenos, tinham mudado de cor. Mal reconheceu a amiga numa mesa mais afastada da entrada, o cabelo quase passava despercebido debaixo do chapéu castanho, o seu rosto quase oculto por uns enormes óculos escuros.

- Ana?! Quase não te reconheço.
- Ainda bem. - Ana levou a chávena à boca e ela reparou que a amiga tremia - Queres um café?
- Sim. - Fez sinal ao empregado e sentou-se - Está tudo bem?
- Desculpa. Devia de ter percebido... - Ana calou-se quando o empregados e aproximou - Como correram as coisas com o dr. Richard?
- Não muito bem, mas parece que bem melhor que para ti.
- Vou para a Bélgica.
- Com Joss?!
- Não. - Ana estremeceu - Mas não podia partir assim, sem tentar resolver algumas coisas. Não fui boa amiga. Quero ajudar-te.
- Esquece isso. A julgar por este disfarce e pelo muito que estremeces precisas mais de ajuda que eu.
- Maria viu-me, e perguntou-me porque me despedi. Claro que não lhe respondi. Mas não precisei de insistir para saber que estás a trabalhar para o dr. Richard. Bastou-me juntar dois mais dois para saber que ele pensa que foste tu que roubas-te a moeda.
- Foi isso que lhe roubas-te? - Ana anuiu.
-Acredita em mim, não sabia! Tens de acreditar! Joss pediu-me para levar um envelope que estava na gaveta da secretária. Nunca imaginei que...

Ana olhou em redor, antes de tirar os óculos. Um hematoma enorme rodeava o seu olho esquerdo e uma boa parte do seu rosto.

- Meu Deus Ana! Como...
- Joss! Uma recompensa por lhe disser que tínhamos de devolver a moeda.
- Temos de ir à policia! Não pode...
- Não! Não compreendes?! Se faço queixa acabo com a minha vida! Quando descobri que tinha roubado um artigo valioso questionei-o sobre isso, disse que era dele por direito, que Richard se tinha aproveitado do avô dele e comprou a moeda por tuta e meia. Acreditei, e não pensei mais nisso, afinal não era bem um roubo. E segundo ele o dr. Richard iria ficar calado, sabia que tinha enganado um velho e isso não era bom para a imagem dele. Comecei a questionar tudo aquilo depois que te envolveu, quando o enfrentas-te naquela noite desejei ter a tua força. Mas sabes como sou com os homens, não me orgulho, mas estava encantada, para mim ele era tudo. As coisas faziam sentido da forma como ele as contava. Não havia motivos para desconfiar. Partimos depois de te deixar, pensei que íamos iniciar uma vida nova mas não foi assim.
- Porque não me pediste ajuda?!
- Acho que me envergonhei. - Ana voltou a colocar os óculos - Um dia acordei e ele estava ao telefone, queria vender a moeda. Achei estranho, tanta coisa para recuperar a moeda do avô e agora queria vendê-la?! Mas voltei a acreditar quando disse que era porque precisávamos de dinheiro. Acho que a ilusão acabou quando o amigo dele apareceu e disse que tínhamos de esperar para vender a moeda, ou então teria de ser vendida no estrangeiro. - Ana fez uma pausa - Quando lhe disse que queria sair disse que se o fizesse ele iria entregar-me como autora do roubo, afinal fui eu que tirei a moeda de lá. Tive medo e calei-me. - Ana encolheu os ombros - À dois dias bebeu demais e como cometi o erro de o enfrentar deixou-me neste estado. Percebi que não podia continuar a viver assim.
- E que vais fazer na Bélgica?
- Não sei, qualquer coisa, apenas quero deixar tudo para trás. E não podia ir sabendo que me odeias.
- Não te odeio. - Christina abraçou a amiga. - Vou ajudar-te a recomeçar, vens comigo, vamos explicar a Richard...
- Baby. - Ana interrompeu-a - Nem todas as pessoas são como tu.  Agradeço imenso, mas saber que não me odeias é quanto me basta para seguir em frente. Acompanhas-me à estação?!
- Claro!

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