terça-feira, 4 de julho de 2017

O REFÚGIO 4ª PARTE


Ellen sentiu uma dor horrorosa percorrer-lhe o pescoço ao mexer-se, abriu os olhos preguiçosamente. Ao ver Luc dormindo recordou a noite anterior, o medo que a febre tivesse regressado obrigou-a a saltar do cadeirão para verificar a temperatura dele. Ao tocar-lhe, Luc moveu-se ligeiramente mas não acordou, tranquilizou-se ao perceber que a febre cedera. Tinha de falar a Niel sobre a febre, podia estar relacionada com os desmaios. Olhou para ele por uns instantes e correu as cortinas antes de sair para tomar um duche e relaxar os músculos.

Enquanto sentia a água relaxar o corpo dorido, recordou o seu apressado plano.

No início tudo acontecera sem que ela planeasse. Durante a viagem, e quando ali chegou, a ideia era abordá-lo e pedir-lhe uma entrevista. Mas a situação saíra do seu controle quando a enfermeira a confundiu com uma colega e não lhe dera tempo para se explicar. Não tinha culpa do rumo dos acontecimentos, como repórter que era, apenas tinha aproveitado a oportunidade. Seria incapaz de usar o sexo para conseguir uma entrevista como Jim tinha sugerido, mas mentir era algo que já tinha feito. Não que aprovasse, mas infelizmente naquela profissão muitas vezes tornava-se necessário. À muito que se convencera que era um mal menor e nunca passaram de pequenas mentiras. Mentiras essas, que nunca chegaram ao ponto de magoar outras pessoas.
Era consciente que, como em outras ocasiões, corria o risco que ele descobrisse, mas não podia pensar nisso.

Pensar que ele podia descobrir e fazer queixa dela, irritou-a ainda mais que quando ele a espicaçava. Atirou a esponja com fúria para um canto do poliban e limpou-se enquanto pensava que ele devia de se sentir agradecido, afinal estava a ajudá-lo! Se ela não tivesse ficado, ele estaria sem ninguém para o ajudar e aturar o seu mau humor.

Um leve som lá fora levou-a a espreitar pela janela.Ao ver que estava a chover abriu a janela para deixar entrar o ar fresco e aquele cheiro a terra molhada e erva que adorava. Deixou-se ficar um pouco a ver a chuva que caía enquanto bebia café. Ao ver a chuva pensou em Luc, talvez ele se sentisse com disposição para se sentar junto à janela, pensando nisso deixou a chávena em cima da mesa.

Bateu ligeiramente na porta, ao não obter resposta entrou sem fazer barulho e voltou a recolher as cortinas para deixar entrar a ténue luz da manhã. Agarrou um livro que estava numa mesa junto à janela e começou a ler. Era um romance de Alexandre Dumas, o conde de Monte Cristo. Já o tinha lido, e embora soubesse de trás para a frente a história do marinheiro que era preso injustamente e que após conseguir escapar da prisão resolvia vingar-se daqueles que o levaram à vida de prisioneiro, era sempre bom reler um dos livros que achava ser um dos melhores que tinha lido.

- Já fugiu?
- Quem? - Ellen estava tão absorta na leitura que não percebeu que ele acordara.
- Edmond Dantès.
- Ainda não. Mas posso assegurar-lhe que consegue. - Ellen deixou o livro em cima da cadeira sorrindo - Como se sente?
- Pegajoso e sem vontade alguma.
- Como teve febre é perfeitamente normal.

Luc olhou-a por uns instantes e apoiou o braço bom na cama para se mexer. Ellen ajudou-o a recostar-se nas almofadas. Ao ajeitar-lhe as almofadas sentiu a humidade da transpiração e o cheiro característico de quem passou a noite com febre. Ele precisava de um bom banho.

- E eu que pensei estar neste estado por motivos bem mais agradáveis.
- Acorda sempre inspirado? - Ellen irritou-se ligeiramente com o comentário dele - Como costuma tomar banho?
- Com a ajuda de Niel.
- Está à espera dele?

Por um lado ela desejava que Niel regressasse rápido para verificar o motivo da febre, que cedera com apenas dois comprimidos, e confirmar se, mesmo sem febre devia de lhe dar outro comprimido. Mas por outro lado, preferia que não regressasse até ela ter a certeza que Luc estava no estado normal.

- ... já me chegam as dores que tenho!
- Acredito que sim. - Ellen olhou-o tentando perceber pela forma de ele agir o que tinha dito.
- Óptimo. Ainda bem que chegámos a acordo sem discussão. Quando Niel chegar, amanhã, tomo então duche.

Ellen olhou para ele com os olhos abertos. Não podia acreditar no que ouvia! O cabelo dele parecia não ver água à semanas, tinha o pijama suado, assim como a cama! Aqueles lençóis tinham de sair dali o quanto antes! Ou quando Niel chegasse e visse que ele estava naquele estado, ia perceber que algo se passava de estranho. Pela forma como ele a olhava não adiantava discutir com ele, teria de fazer as coisas como se fazem com as algumas crianças. À força e sem aviso prévio! Não o podia levar até à casa de banho em braços, mas algo lhe haveria de ocorrer.

- O dia está maravilhoso!
- Gosta da chuva?! - Ellen sorriu-lhe - Eu adoro o cheiro das primeiras chuvas.
- Estava a ser irónico!
- Oh!
- Assim que te vi percebi que tinhas algo de errado!
- Nem todos podemos ser perfeitos como você! - Ellen sentiu uma ponta de irritação.
- É agradável ver que me achas perfeito.

Ellen sentiu-se envergonhar novamente, ele tinha aquela facilidade de a irritar e de a fazer dizer a primeira coisa que pensava. Sem lhe responder entrou na casa de banho. Olhou em redor, se o levasse até ali na cadeira de rodas ele, apesar da dificuldade devido ao braço ligado, podia lavar-se, mas não podia ficar de pé. Os bancos da cozinha eram de madeira, mas certamente aguentavam um bom banho. Restava descobrir como proteger as ligaduras da água.

Saiu sem lhe dizer o que ia fazer, uma vez na cozinha apanhou o banco e os seus olhos pararam no rolo de carne que estava coberto com película aderente. Se vedava os alimentos servia perfeitamente para proteger as ligaduras. Apanhou o rolo da gaveta e ao fechá-la viu uma bacia. Sorriu ligeiramente, talvez tivesse descoberto uma forma de o levar a fazer o que lhe dizia!

- Estás louca! - Luc olhava para ela atónito.
- Não vou ficar aqui consigo a cheirar como se não tomasse duche à meses! - Ellen evitava rir da cara que ele fazia. - Por isso deixe-se de coisas. Já vi montes de homens nus, mais um não faz diferença nenhuma.
- Não contes comigo para aumentar essa lista!
- Não preciso da sua autorização. Apenas o informei que vou lavá-lo, o cheiro é insuportável.
- Se eu consigo suportar tu também. - Luc olhou-a furioso - E não me vais lavar como se fosse uma criança!
- Muito bem. - Ellen deixou a bacia no chão - Nesse caso, vai até à casa de banho e toma duche sozinho.
- Estás a esquecer-te que Niel não me permite ficar de pé?
- Já notou que quando lhe convém obedece ao que lhe dizem!? - Ellen manteve o olhar dele - Por isso diga-me, coopera e vai tomar um duche, ou prefere que o lave aqui?!

Ellen viu-o revirar a vista e depois atirar com os lençóis para o lado. Sorriu ao perceber que ele cedera. Colocou-se ao lado dele e ajudou-o a sentar-se na cadeira de rodas. Entre alguns impropérios da parte dele, conseguiu chegar à casa de banho.

- Acho que me confundiste com alguma sandes!
- Vou usar isto para tapar as ligaduras e vou ajudá-lo a sentar-se naquele banco. - Ellen olhava para ele que seguia as indicações dela com o olhar - Assim pode tomar duche, quando terminar tem ali a toalha. Depois ajudo-o a chegar à cama e uma vez lá pode vestir-se.
- Vejo que elaboras-te bem o plano.
- Se quiser posso ajudá-lo a despir as calças.
- Mesmo se não usar nada por baixo?!

Mais uma vez ele deixava-a sem fala. Não tinha pensado nisso, se ele não usava boxers teria de o ver nu! E contrariamente ao que lhe dissera anteriormente, apenas tinha visto Jim nu!

- Desististe?! - Luc sorria como uma criança travessa - A ideia do banho foi tua, por mim pode ser amanhã.
- Vai tomar banho hoje.

Ao ver o sorriso dele, a irritação que crescia quando ele a espicaçava apoderou-se do seu interior dando-lhe forças para o encarar. Naquele momento sentia-se capaz de tudo, inclusive lavá-lo ela mesma! Mas ele parou de sorrir e olhou para o duche.

- Envolve-me lá com essa coisa, depois podes deixar-me sozinho.

Ellen envolveu as ligaduras com a película, tendo o cuidado de as tapar bem. Sentindo o olhar dele em cada movimento, colocou tudo o que achou necessário para ele se lavar ao alcance dele e saiu depois de confirmar que se sentia bem e de lhe dizer que, se precisasse, ela estaria no quarto.

Ficou algum tempo encostada à porta a ouvir os lamentos dele e alguns impropérios. Quando ouviu a água a correr foi mudar a roupa da cama. Abriu as gavetas tentando encontrar lençóis lavados, mas apenas encontrava roupa dele. Um perfume fresco entranhava-se no seu nariz sempre que abria uma gaveta. Desistiu dos lençóis quando se sentiu inebriada por aquele aroma. Algo naquele cheiro a fazia arrepiar-se e sentir um ligeiro tremor interior. Retirou umas calças e uns boxers e colocou-os em cima da cama. Enquanto ele se vestisse, ela ia meter aqueles lençóis a lavar e procurar uns lavados.

Pouco depois deixou de ouvir a água correr. Olhou a porta impacientemente, começava a achar que estava a demorar demasiado tempo. Levantou-se com intenção de ir ver que se passava quando a porta se abriu e ele apareceu com a toalha ao redor da cintura. Abriu a boca para lhe dizer que não devia de forçar a perna, mas ao seguir uma gota de água que escorria pelo braço dele, o seu olhar parou no corte da perna. Não tinha pensado naquele penso!

- Desculpe! Não me lembrei desse...
- Não te preocupes, este é à prova de água.
- Felizmente.

Ellen começou a retirar a película em silêncio, não podia cometer lapsos daqueles. Geralmente eram aquelas pequenas coisas que delatavam os criminosos. Como "enfermeira" dele, tinha obrigação de saber tudo o que ele tinha!

- Não encontrei os lençóis. Se me disser onde estão...
- Ao fundo do corredor, estão num armário. - Ele ajeitou-se na cadeira - O cheiro ainda está muito activo?
- O cheiro!?
- Nas gavetas. Deixei cair o aftershave e acabou por escorrer pelas gavetas.
- Um pouco. - Involuntariamente Ellen arrepiou-se ao recordar o aroma - Deixei-lhe a roupa, pode vestir-se enquanto vou apanhar o seu pequeno almoço e os lençóis.

Enquanto preparava o tabuleiro pensava no que iam fazer durante o dia. Talvez organizar as refeições ou ler. Algo teriam de fazer.

- Junta esses lençóis à roupa que está na casa de banho e mete-a no cesto.
- Pensei em lavá-los.
- No fim de semana vem a mulher a dias para limpar e levar a roupa.

Luc colocou a chávena no tabuleiro dando o pequeno almoço por terminado. Enquanto ela fez a cama ele disse-lhe que vinha uma mulher limpar a casa uma vez por semana e que entregavam as refeições quartas e sábados. E que Niel vinha de dois em dois dias. A enfermeira particular era exigência de Niel, devido aos desmaios e perante a recusa dele em ficar no hospital.
Aparentemente estava tudo controlado, tudo menos o facto de ela não ser enfermeira.

- Vou deitar-me um pouco.
- Deixe-me apanhar a cadeira de...
- Posso andar!
- Niel disse que...
- Ele não está aqui. Pára de me tratar como um inválido!
- Mas a sutura pode reabrir!
- Apenas abriu porque caí e os pontos não suportaram a queda.
- Ainda tem pontos?!

Ellen quase mordeu a língua ao ver a expressão dele, parecia-lhe desconfiado. Era melhor esquecer o assunto, se insistisse em saber coisas sobre o acidente, acabava por revelar que não sabia coisas que supostamente devia de saber.

- Digo isto porque o acidente já foi à algum tempo e, caso tivesse pontos, era suposto terem sido retirados.
- Não o fiz no acidente.

Ellen seguiu a mão dele até esta parar no sítio do ferimento e observou como ele massajava a zona. Ajeitou-lhe as almofadas e sentou-se junto à janela a observar a chuva que aumentara de intensidade. O vidro deixava ver o reflexo dele. Luc mantinha o olhar fixo na parede. Sentiu uma certa pena dele ao imaginar o quão difícil devia de ser aquela situação.

As revistas sempre mostraram um homem do mundo, que gostava de aproveitar a vida e sabia como o fazer em grande estilo. Eram recorrentes as fotografias dele com alguma modelo famosa num resort de luxo ou numa festa. Estar ali, dependente dos demais não devia de ser fácil para ele. As pessoas viam o homem de negócios bem sucedido e bonvivant. Um homem intocável, quase uma espécie de deus, não uma pessoa que podia sofrer como os comuns mortais.

Aquele era um lado dele que podia usar no seu artigo. Se conseguisse que ele falasse sobre o acidente, sem parecer que o estava a entrevistar, seria fabuloso. Precisava de preencher certas lacunas nos acontecimentos. Mas como fazer perguntas sem que ele percebesse que as estava a fazer?

- Podes ler para mim ?
- Quer que leia!?
- Se não te importares. Torna-se complicado ler com um braço imobilizado.

Ellen começou a ler com alguma relutância, mas pouco depois embrenhou-se no livro e esqueceu que lia para ele. Ao terminar o segundo capítulo olhou para ele, tinha os olhos fechados. Deixou o livro em cima da cadeira e foi até à cama para lhe retirar uma almofada. Quando se inclinou sobre ele, ele abriu os olhos. Ellen estremeceu quando sentiu a respiração dele no seu rosto. A boca dele estava demasiado perto. Fechou os olhos momentaneamente, evitando catalogar o que se estava a passar. Não passava de um acaso, aquela não era a primeira vez que lhe ajeitava as almofadas ou lhas retirava.  Estava a imaginar coisas...

Mas o calor que sentiu, quando os lábios dele procuraram os dela, não era imaginação. Era bem real.
Ellen sentia a boca dele, quente, movendo-se habilmente sobre a sua, exigindo uma resposta que ela relutava em dar-lhe. O braço dela começou a tremer devido à má posição e cedeu caindo no peito dele fazendo-o gemer de dor.

- Raios! Queres matar-me!?
- Se se comporta-se não o tinha magoado!
- Então foi propositado!
- Claro que não! - Ellen voltou a irritar-se - Mas para a próxima será! Por isso acho bem que não o volte a fazer.

Ellen dirigiu-se ao seu quarto sentindo a raiva apoderar-se dela. Agarrou o bloco onde escrevia o rascunho sobre ele e começou a escrever coisas sem sentido.

" Luc considera-se uma bênção para as mulheres... Um verdadeiro Adonis... Esquece que nem todas as mulheres se perdem por ele... Nem se afogam nos olhos brilhantes... Nem desejam deitar-se no peito musculado... Peito que está coberto de ligaduras! Aparentemente o facto de estar numa cama, dependente dos demais, não o impede de tentar aumentar o seu rol de conquistas... E, para informação da maioria das mulheres, não beija assim tão bem!" Acrescentou com raiva.

Ellen atirou com o bloco para dentro da gaveta ao ouvir a campainha. Enquanto voltava ao quarto dele pensava no que tinha escrito. Tinha sido injusta, ele não tinha assim tantas ligaduras. E não beijava bem, beijava divinamente! No momento que os lábios se tocaram, sentiu como se tivesse engolido um cubo de gelo e este fizesse o seu estômago contrair-se. Se não fosse por esse sentimento desconhecido, talvez tivesse correspondido ao beijo. Mas fora apanhada desprevenida, nunca sentiria algo assim! O que só confirmava a extensa experiência dele.

- Precisa de algo?

Ellen evitou olhar para ele. Ainda tentava assimilar o que sentira, não estava preparada para o encarar sem voltar a pensar no beijo.

- Quando vais?
- Como assim?
- Compreendo que, tendo em conta o que aconteceu, queiras partir.

Então ele beijara-a com um propósito!  Queria que, assim como as demais enfermeiras, ela também o deixa-se! Sentiu a raiva crescer dentro dela. Os homens eram todos iguais! Ricos ou pobres, eram todos idiotas manipuladores!

- Pois deixe-me dizer-lhe que se enganou. Pretendo ficar.
- Vais ficar?!
- Porque não?! - Ellen falou com uma doçura fingida - Como disse ontem, não é o primeiro homem que admite ter fantasias com enfermeiras. Desengane-se se pensa que foi o primeiro que me beijou!
- Alegra-me saber isso! Assim não me pesa a consciência!

Ellen desejou voltar-lhe costas e deixá-lo sozinho, mas isso seria admitir que ele vencera. E isso ela não queria. Aproximou-se da janela e sentou-se no cadeirão para retomar a leitura.

- Quer que continue?! - Ellen forçou um sorriso.
- Se quiseres.

Enquanto procurava a página que tinha deixado a meio, olhou de soslaio para ele. Parecia estar com pior humor que antes do duche! Sorriu ao pensar que tinha vencido aquela batalha. Se pensava que ela saía a fugir por causa de um beijo estava enganado. Jim tinha-a beijado imensas vezes. Nenhum com o calor do dele, nem com uma suavidade que levava a desejar mais. Ou que a fizesse estremecer de frio quando se sentia acalorada. Não, nenhum tivera esse efeito nela, mas já tinha sido beijada!

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