domingo, 24 de setembro de 2017

APÓS O ENTARDECER 11ª PARTE




 Devido a um surto de gripe o hospital estava com uma afluência maior que o normal. A conversa num tom mais elevado levou Mellisa a olhar para o balcão, uma colega tentava explicar a um jovem que os casos mais urgentes tinham prioridade. Ao ver o gesto que este devolveu como resposta à explicação da colega, agradeceu por não trabalhar nas urgências. Certas pessoas não tinham a menor educação, nem consideração por quem quer que fosse!

Quando entrou na secção onde trabalhava, percebeu que mais uma vez era a primeira a chegar. Hábito que se tornara recorrente desde que chegara do Brasil. Os pensamentos e as lágrimas que lhe faziam companhia durante as noites não ajudavam a conciliar o sono, o que a obrigava a sair cedo da cama. Sentia imensas saudades de Diana e de Joshua. Porque a vida era tão cruel com ela!? Era pedir muito que ele a amasse!?

Ao perceber o rumo dos seus pensamentos respirou fundo e ligou o computador. Não era boa ideia deixar-se levar pela saudade... Decidida a esquecer Joshua, pendurou o casaco e deixou a caixa de bolachas em cima da secretária de Milly. Além de sua colega, Milly era mãe de três  meninas pequenas, e nunca tinha tempo para tomar o pequeno almoço antes de sair de casa. 


- Tu não dormes de todo, ou dormes aqui?! - Milly entrou com um copo plástico na mão cheio de café.
- Cheguei à pouco. - Mellisa sorriu ao vê-la mordiscar uma bolacha.
- Vou fingir que acredito! E sim, estou a ser egoísta. Se não fosse assim, como podia desfrutar destes teus mimos?!

Mellisa sentou-se na sua secretária observando a colega fazer acrobacias para pendurar o casaco sem largar o café e as bolachas.

- Como estão as meninas?
- Rebeldes e tagarelas! - Milly revirou a vista - Quem disse que as meninas são mais sossegadas!?
- A mãe de alguma delas!?!
- Duvido! Ai Deus... As meninas dão tanto trabalho! Vestidos, lacinhos... Porque não tive meninos!? Ao menos um! São calminhos, amigos das mães, com roupa muito prática...

As comparações entre as meninas e os meninos eram a conversa preferida de Milly e ela sabia de memória cada palavra da colega.
Mellisa olhou para as pessoas que começavam a chegar e uma delas chamou a sua atenção a pontos de a fazer deixar cair a caneta.

- Não pode ser ! - Mellisa levantou-se - Desculpa Milly, tenho de ir ali fora um instante.
- Claro!

Mellisa dirigiu-se ao homem alto que se apoiava na parede. Tinham passado alguns anos, mas ela reconheceria aquele olhar em qualquer lugar...


- Ron?!
- Mellisa!? Deus do céu! Como estás diferente!
- Achas!? - Ela beijou o primo - Que fazes aqui? Está tudo bem lá em casa?!
- O meu pai faleceu.
- Não acredito! Como aconteceu? Estava doente?
- Não. É daquelas coisas...

Ron desviou a vista e manteve-se em silêncio mostrando que aquele assunto o magoava. Ao ver o olhar triste do primo percebeu que ele não ia adiantar muito mais.

- Sinto muito. Quando é o funeral?
- Foi na semana passada.
- Não estou a entender.
- Desculpa. A mãe não quis que te avisássemos. As mesmas coisa de sempre...
- Compreendo.

Mas não compreendia, gostasse a tia ou não, ela era sua sobrinha e tinha direito a ir ao funeral do tio.

- Ele gostava muito de ti. - Ron olhou em redor - Vim porque queria falar contigo, mas não aqui. Quando podemos falar?
- Podes esperar até às cinco?!
- Às cinco... Aqui estarei.

O dia pareceu interminável, Mellisa não conseguia esquecer a morte do tio, nem a atitude da tia. Como pode esconder-lhe algo semelhante!?
Sabia que a tia era uma pessoa rancorosa, mas ocultar-lhe deliberadamente a morte do único tio que tinha parecia-lhe demais.

Talvez não devesse ficar admirada, afinal escrevera por anos a fio e nunca recebera uma resposta! O que a levava a pensar nos motivos de Ron ao procurá-la.

Sempre imaginara que quando a contactassem, isto no caso de o fazerem, seria August, o primo mais velho a procurá-la e não Ron. Durante muito tempo esperou por algum tipo de contacto, mas com a ausência de notícias da parte deles, e com a passagem dos anos, convencera-se que não a queriam na vida deles! Se não quiseram saber dela até ali, porque queria Ron falar com ela!?

O relógio ainda não marcava as cinco horas quando Ron apareceu no hospital. Sorriu ligeiramente para ela e esperou que ela terminasse o serviço.

- Queres ir beber um café? - Ron ajudou-a a vestir o casaco.
- Obrigada. Não preferes ir lá a casa?
- Não quero atrapalhar a tua vida.
- Não atrapalhas. - Mellisa agarrou o braço dele - E  se me ajudares, até te ofereço o jantar.
- Combinado.

Mellisa grelhava os bifes enquanto Ron fazia a salada. Embora soubessem que não podiam adiar o assunto, até ali tinham-no evitado com conversas triviais.

- Estás bem !? - Ron serviu-lhe um copo de vinho.
- Sim. Porque perguntas?!
- Não sei. Acho-te triste. - Ron bebeu um pouco de vinho - Talvez seja impressão minha. Afinal já passaram... Quantos anos?! Nove?
- Dez. Já passaram dez anos.
- Senti a tua falta. Assim como ele.
- Eu também senti a vossa. Escrevi muitas vezes.
- Escreveste!? Nunca vi carta alguma! A minha mãe!!!
- Talvez se tenham extraviado.
- Achas!? - Ron olhou-a fixamente - Sabes que nunca liguei muito para essa tua obsessão em saber o porquê... Qual a razão que te levou a morar connosco... Essas coisas! Sempre pensei que eram coisas de mulheres, aquelas coisas que vocês metem na cabeça.
- Coisas de mulheres!?
- Quando cresces a ouvir August ficas com uma ideia um pouco machista sobre as mulheres.
- Sim eu sei. - Ela baixou a vista ao recordar o quase beijo forçado. - Uma visão um pouco preconceituosa.
- Sim. Felizmente cresci. - Ron fez um meio sorriso - À algum tempo que compreendo porque insistias nisso. Não era curiosidade, era necessidade de entender.
- Sim...
- Sabias que a minha mãe amava o teu pai?
- Sim. - Ela bebericou o vinho - Foi por isso que vieste?! Queres que te fale sobre isso?
- Não. Sobre isso sei o necessário, o meu pai contou-me no dia que a minha mãe saiu de casa.
- Saiu de casa?!
- Voltou no dia seguinte. - Ron encolheu os ombros - Nunca percebi porque o meu pai continuou ao lado dela. Sempre imaginei que se amavam até ao dia que os ouvi discutir. Ele sempre acreditou que um dia ela o iria amar. Mas depois da discussão perdeu o interesse por tudo. Foi descurando a quinta, o trabalho, até nós! Nestes últimos anos não era mais o homem alegre que conheceste. Acho que, embora indirectamente, a minha mãe foi a causa da sua morte.
- Não digas isso! Que horror!
- Ela tirou-lhe a ilusão, finalmente acabou com a única esperança que ele tinha. - Ron rodou o copo na mesa - Que um dia o amasse. Sabes o que é ser a segunda opção de outrem!? Dói, vai consumido...
- Imagino... - Mellisa limpou a lágrima que escorregava lentamente pelo rosto. - Mas ele sempre soube. Não era uma situação nova.
- Não, não era. Mas no dia que discutiram, ela não foi muito branda. Entre lágrimas disse-lhe que ele nunca chegaria aos pés do irmão! Que podia parar de tentar, porque nunca iria ocupar um pedacinho do coração dela. Que ela tinha entregue o coração por inteiro à muitos anos.
- Deve ter sido muito doloroso para o teu pai.
- Foi... Quando o confrontei parecia uma criança. - Ron fechou os olhos tentando controlar as lágrimas - Precisava saber. Entendes!? Não conseguia perceber porque insistira durante anos naquele casamento. Chorou agarrado a mim... Nunca tinha visto o meu pai chorar! Falou do casamento, do amor que tinha pela minha mãe e dos teus pais. Depois de falarmos pediu-me para não te dizer nada, que tinhas sofrido suficiente. O passado devia ficar no passado. Cumpri a promessa, mas depois do funeral senti que tinhas o direito de saber. O nosso passado é o que nos molda! Não era isso que dizias!?
- Algo do género.
- Foi nesse momento que compreendi o que sentias. Eu também tinha perguntas que queria ver respondidas! Por isso confrontei a minha mãe, exigi saber porque tinha casado com o meu pai se não o amava.
- Lá no fundo devia de o amar.
- Infelizmente não. Sabes o que disse!? - Ron fez uma careta - Casou porque era irmão do teu pai e tinha a ilusão que lhe faria ciúmes! Deus... Como pode ser tão fria!? Tão desprovida de sentimentos!?
- Mas sempre cuidou de vocês e ama-vos. Não duvides disso.
- Não duvido, à sua maneira ama. Mas não como os teus pais te amavam. - Ron empurrou o prato e segurou-lhe a mão - A tua mãe adoeceu e teve se ser internada. Como tinha de ficar no hospital muito tempo, os teus pais deixaram-te lá para não veres a tua mãe sofrer. E para evitar um sofrimento maior à tua mãe. Os tratamentos eram dolorosos o suficiente. Mas foi a tua mãe que procurou o meu pai e lhe pediu para ficares lá em casa. Disse-lhe que ver nos teus olhos a dor ia magoá-la mais que qualquer tratamento. Por mais doloroso que fosse a separação, saber que não presenciavas a dor dela, dava-lhe alento para seguir em frente.

As lágrimas caíam copiosamente pelo rosto dela. Os pais tinham-na deixado com os tios para a protegerem, para não ver a mãe sofrer.

- Não sei se a tua mãe estava recuperada totalmente ou se vinham apenas ver-te. Sei que infelizmente tiveram um acidente e não chegaram a casa.
- Porque nunca me disseram?
- O meu pai tinha dado a sua palavra ao teu pai. Ele nunca faltaria ao prometido!
- Eu sei que não!
- Não sei se fiz bem em vir, mas pensei que...
- Fizeste sim! Finalmente posso parar de me perguntar o porquê!

A conversa continuou por mais algum tempo, embora tenha tomado um rumo mais alegre. Quando acompanhou Ron à porta sentia-se mais leve, não totalmente, mas parte da dor que a acompanhara durante muito tempo finalmente desaparecera.




Sem comentários:

Enviar um comentário