Ao sentir a chuva miudinha no rosto arrependeu-se de ter pedido ao taxista que a deixasse no jardim, mas quando saiu de casa parecia-lhe uma boa forma de afastar os fantasmas mais recentes, assim como o olhar condescendente da enfermeira chefe. O esforço físico que fazia para chegar a tempo, dava-lhe alguma cor e fazia-a parecer mais saudável.
Ao ver o seu reflexo na porta do hospital achou que o passeio debaixo de chuva não tivera o efeito pretendido. Forçando um sorriso dirigiu-se ao balcão onde estavam as enfermeiras. Estas olharam para ela como se fosse a primeira vez que ali ia e ela teve de reconhecer que tinha passado imenso tempo desde essa altura.
E os motivos que a levavam a estar ali, e não em pediatria, eram puramente egoístas.
Não se sentia capaz de estar com as crianças pois elas recordavam-lhe Diana, e ela não precisava que lhe recordassem o que não conseguia esquecer. Diana e Joshua!
Tinha perdido o conto ao número de vezes que agarrara o telemóvel para telefonar a Joshua, mas desistia antes de começar a marcar o número.
- Andas perdida!? - Uma das enfermeiras sorriu-lhe.
- Se soubesse que me recebiam assim não tinha vindo.
- Não brinques com coisas sérias! Está tudo bem?
- Sim. Porque perguntas? - Mellisa fingiu ler uma das folhas que estava em cima do balcão, ultimamente as pessoas, principalmente as que a conheciam, pareciam demasiado preocupadas com ela.
- Não é normal ver-te por aqui.
- Pensei em visitar-vos.
- E nós agradecemos, toda a ajuda é bem vinda. Ultimamente temos demasiados doentes e é completamente impossível dar a devida atenção todos eles.
A enfermeira começou a andar pelo corredor e Mellisa seguiu-a ouvindo os problemas que elas enfrentavam diariamente.
Depois de algumas horas de voluntariado entrou no elevador. Tinha-se esquecido do muito que desfrutava ao falar com os doentes mais velhos.
Quando saiu do hospital a noite descia sobre a cidade. Sorriu amargamente ao pensar que assim teria menos tempo para pensar em Joshua e Diana. Apertou o casaco e juntou-se à multidão sentindo o sentimento de vazio renascer no peito. Pouco depois caminhava pela rua sem destino certo.
Depois de mais uma noite de insónias, Mellisa entrou no táxi.
Ao ouvir as músicas natalícias tomou consciência que faltava apenas um mês para o natal e ela encontrava-se sem ânimo. Talvez porque passava grande parte da noite a recordar o mês que esteve no Brasil e a perguntar-se porque não se contentara em ficar ao lado dele.
Quando o dia clareava ela admitia que tudo se resumia a um facto. Ela não queria ser uma substituta da mulher que ele amava, não se contentava em ser a mãe de Diana. Queria ser a mulher que ele amava, não outra coisa qualquer!
Mas nunca imaginou que as saudades fossem tão dolorosas, que lhe rasgassem a alma, ou que lhe arrebatassem qualquer tipo de vontade.
Naqueles dias apenas queria ficar em casa sossegada... De preferência sentada no sofá a olhar a lareira...
Ultimamente até um simples banho exigia uma enorme força de vontade da parte dela. Assim como controlar as lágrimas que se tornaram frequentes.
Nessa manhã, enquanto esperava por um táxi, uma menina sorriu-lhe. A pequena semelhança entre a menina e Diana foi o suficiente para que a imagem deles permanecesse mais viva que nunca na sua cabeça.
Nem o discurso empolgado da sua chefe ao fim da manhã, sobre a festa de Natal, conseguia afastar a recordação deles.
Apoiou as mãos na secretária e fechou os olhos por uns momentos, precisava apagar a imagem dele da sua cabeça.
Pouco depois a voz da chefe parecia mais próxima, mais clara, e deixou-se ficar de olhos fechados.
Mas devia de ter demorado mais que o pretendido, pois quando os abriu a sua chefe tinha saído da secção e Faty olhava para ela sentada numa cadeira.
Sorriu para a amiga e apanhou a carteira.
Fazia duas semanas que Faty insistia em ir até ao hospital para beberem café durante a pausa do almoço.
Facto que ela agradecia pois sentia-se ridiculamente só. Depois da visita de Ron parte do vazio que sempre sentira, finalmente desaparecera, mas contrariamente ao que ela esperava, isso não lhe restituíra a alegria. Os fantasmas não tinham desaparecido totalmente, apenas tinham sido substituídos por outros, deixando-a sem vontade de conviver com os demais.
- Já pensaste no que te disse?
- Sim. Mas não contes comigo.
- Como assim?!
- Não estou com disposição para festas.
- Olha pra ela! A ideia é fazer um jantar de natal com todos os vizinhos. TODOS!
- Eu não...
- Livra-te de arranjares desculpas! A única desculpa aceitável para a tua ausência é estares num avião para ires ter com ele!
- Não estou a inventar desculpas. Ron convidou-me para jantar nessa noite.
- Então trá-lo! É natal... Quantos mais melhor.
- Quero estar sozinha.
- Afinal! Vais jantar com Ron ou queres ficar sozinha?!
- É assim tão difícil entender que quero estar sossegada!?
- Para veres um filme e chorar mais uma vez !? Não senhora... Vais ao jantar nem que eu tenha de te arrastar.
- Rica amiga!
- Podes crer que sou! Um dia irás agradecer-me.
Perante o olhar determinado da amiga, Mellisa encolheu os ombros e agarrou a chávena do café. Nesse instante um corpo colidiu com o dela ao mesmo tempo que uns braços a envolviam obrigando-a a entornar o café sobre a mesa.
- Mas que... - Ela calou-se ao ver quem a agarrava - Diana!?
- Desculpa. - Diana olhava para ela com olhos tristes - Não queria entornar o teu café.
- Não te preocupes com isso. - Ela envolveu a menina num abraço apertado - Que saudades! Estás linda.
Mellisa olhou em redor procurando por Joshua, a tristeza invadiu-a ao percorrer o espaço sem o encontrar. Uma rapariga limpou a mesa quando trouxe outro café e elas sentaram-se dedicando toda a atenção a Diana.
- Olá. - Faty sorriu para a menina - Então tu és a princesa...
- Sim. - Diana sorriu radiante. - E tu quem és?
- Sou Faty.
- Trabalhas com os meninos de Mell?
- Os meninos?! - Faty olhou para as duas.
- Estás a fazer demasiadas perguntas.
Mellisa sobressaltou-se ao ouvir a voz dele. Com receio de o ver acompanhado voltou-se devagar. O coração parecia querer saltar do peito ao perceber que estava sozinho.
- Eu disse que a encontrava. - Diana olhou triunfante para o pai.
- Pois disseste. - Joshua olhava directamente para ela - Como estás Mel?
- Bem. E tu?!
- Também.
Mellisa sentia-se incapaz de desviar a vista, além das olheiras profundas, nada mais se tinha alterado. Continuava como ela o recordava, lindo! Faty tossiu chamando a atenção dela.
- Desculpa. - Mellisa olhou para Faty - Joshua, o pai de Diana. - Depois voltou-se para ele - A minha amiga Faty.
- Prazer.
- O prazer é todo meu. - Joshua aceitou a mão que ela lhe estendia.
- Diana, queres ir ver os meninos de Mellisa?
- SIM... Posso?
- Não acho boa ideia. - Mellisa olhou para ela.
- Porque não?! - Faty agarrou a mão de Diana - Não me achas competente?!
- Sabes que...
- Não vejo porque não. - Joshua interrompeu-a.
- Sendo assim...
Faty desapareceu com Diana, deixando-a a olhar para a porta do bar. Desejara aquele momento demasiadas vezes, e agora que ele estava ali, olhava para ele como uma adolescente, sem saber que dizer nem fazer.
- Não devias ter permitido que Diana fosse. - Mellisa mexeu-se inquieta na cadeira.
- Porque não?!
- Os meninos estão todos internados.
- Eu sei.
- Como sabes isso!?
- Não interessa. - Joshua segurou-lhe a mão - Não telefonaste...
- Nem tu! - Ela retirou a mão
- Tens razão. - Joshua franziu o sobrolho - A que horas sais?
- Porquê?!
Mellisa olhou para ele desconfiada.
- Para irmos jantar.
- Jantar?!
- E conversar.
- Conversar?!
- Temos assuntos pendentes.
- Temos?!
Joshua riu descontraído e ela ficou a olhá-lo fixamente.
- Não percebo onde está a piada.
- Recordei o dia que te conheci.
- E isso é engraçado?!
- Depende do que recor...
Joshua calou-se quando uma mulher se aproximou da mesa.
- Peço desculpa Mellisa, mas precisam de ti.
- Vou já.
A mulher afastou-se rapidamente e ela olhou para o relógio, estava atrasada. Nunca se tinha atrasado.
- Tenho de ir trabalhar.
- Acompanho-te.
- Mas eu vou trabalhar.
- Sim, eu ouvi.
Mellisa levantou-se da mesa e ele voltou a segurar-lhe a mão enquanto se colocava ao lado dela.
- Vou demorar algum tempo.
- Não importa, nós esperamos.
- Vais aborrecer-te.
- Esperar por ti não é um aborrecimento. - Joshua inclinou-se e beijou-a levemente antes de colocar um braço na cintura dela. - Não vou cometer o mesmo erro outra vez.
Enquanto caminhava ao lado dele perguntava-se que quereria ele dizer com não cometer o mesmo erro?!
Durante a tarde tentou concentrar-se no trabalho, mas muitas vezes dava por si procurando o olhar dele.
-... estou farta.
- Acredito. - Mellisa olhou para a colega sem perceber sobre o que esta falava - Mudando de assunto, sabes se compraram algo para a chefe?
- Falou-se em perfumes ou algo similar.
- Um dia vai pensar que lhe estamos a enviar uma espécie de mensagem.
- Achas?!
- Desde que recordo que lhe oferecemos perfumes.
- É verdade... Tu imagina... Ela entrando aqui, de perfume na mão, agitando o frasco e gritando: Outro!? Por acaso estão a insinuar que cheiro mal!? Ou será que estão fartos de mim!? Com tanto perfume um dia abro uma perfumaria!
- Era mulher para isso.
- Mas na certa acrescentava a frase favorita dela: Esperava melhor de vocês... Muito melhor...
Mellisa sorriu para a colega e depois de confirmar que eles ainda a esperavam, retomou o trabalho.
Quando o dia terminou desligou o computador e olhou novamente para as cadeiras, Faty já não estava. Joshua olhava atentamente para a filha enquanto esta fazia um desenho.
Como se persentisse que estava a ser observado Joshua olhou para onde ela estava. Sentindo o coração pulsar na garganta juntou-se a eles.
- Não tinhas porque esperar.
- Não tinha nada melhor para fazer. - Joshua segurou a mão da filha - Trouxeste o teu carro?
- Geralmente uso o táxi.
- Então vamos.
Diana, que cantarolava ao lado deles, de repente calou-se.
- Faty não vai connosco?
- Ela não trabalha aqui .
- Ah! Está bem. Gostei dela e dos teus meninos.
- Aposto que, assim como Faty, eles também gostaram de te ver.
- Faty disse que posso voltar para brincar com eles. Posso!?
- Claro que sim. Sempre que quiseres.
Joshua conduziu até ao centro comercial onde viram um filme com Diana e depois foram jantar. Embora mantivessem uma conversa descontraída ela estava nervosíssima.
Por algumas vezes deu por Joshua a olhá-la de forma esquisita enquanto falava com Diana o que não ajudava a que descontraísse.
- Disseste que querias falar.
- Mas não aqui. É por isso que estás nervosa?
- Não gosto de tanto suspense.
- Não pretendo deixar-te nervosa nem apreensiva.
- Pois estás a fazê-lo. Não entendo porque vieste.
- Não!? - Joshua chamou o camareiro - Então vamos embora. Preferes falar no hotel ou na tua casa ?
- Na minha casa.
- Muito bem, vamos!?
Joshua levantou-se e Mellisa segurou a mão de Diana para se dirigirem à saída.
Ela tinha preferido a sua casa para sentir alguma segurança. Sempre podia pedir-lhe que saísse.
A viagem recordou-lhe uma outra onde o silêncio era tão ou mais pesado que naquele momento. Quando Joshua estacionou o carro junto ao prédio percebeu que estava muito nervosa. Respirando fundo apanhou as coisas da menina e dirigiu-se à entrada em silêncio.
À medida que o elevador subia o seu coração aumentava o ritmo.
- Posso ver as tuas fotografias? - Diana puxou-lhe a mão.
- As fotografias?
- O teu livro de fotografias.
- Sim, claro que podes. - Mellisa tirou as chaves da mala quando o elevador parou.
- Faty disse que tinhas muitas.
- Algumas.
- Eu também quero fazer um.
- Acho muito bem.
Mellisa abriu a porta e acendeu a luz da sala. Diana sentou-se no sofá, mas Joshua observou o apartamento por uns minutos e depois ficou a olhar para a estante onde tinha os livros.
- Não sabia que gostavas de Shakespeare.
- E não gosto. - Mellisa passou a mão levemente pela lombada - É uma recordação da minha mãe.
- Entendo...
Mellisa agarrou um álbum e deu-o a Diana antes de olhar novamente para ele.
- Queres café?
- Não obrigada.
- Quando tiver o meu álbum vou colar as fotos da mãe e dos avós. - Diana passava as folhas calmamente.
- Parece que aceita melhor os avós.
- Sim. Estivemos com eles uns dias .
- Sim!? - Mellisa engoliu em seco - Como estão?
- Bem. Gostaram de ver a neta.
- O que é normal.
- Sim. Eles adoram-na.
Olharam para o sofá e Mellisa sorriu ao ver que Diana tinha adormecido. Com cuidado tirou-lhe o álbum e tapou-a com uma manta. Ao olhar novamente para Joshua, este tinha na mão a fotografia de Ron.
- É alguém especial?
- É o meu primo. - Mellisa colocou a foto numa gaveta - Porque vieste?
- Porque não devia ter aceite a tua resposta quanto te pedi para casares comigo.
- Como não devias!?
- Devia ter insistido. Sei que te convenceria.
- Não acredito que vieste até aqui para me convenceres!
- Não te quero convencer. Sei que sentes...
- Não! - Mellisa olhou-o por entre as lágrimas - Não tens o direito de me pedir algo semelhante.
- Até parece que te estou a pedir que assassines alguém!
- É praticamente igual! Não entendes que morreria todos os dias um pouco?!
- Parece que me iludi. Afinal não gostas de Diana como demonstras.
- Não confundas as coisas! Adoro a tua filha. Tanto como se fosse minha. Mas não podes pedir-me que viva na sombra da mulher que ainda amas!
- Mas de que mulher falas!?
- Da mãe da tua filha!
Mellisa olhou para Diana quando ela se mexeu no sofá devido às vozes mais elevadas. Quando voltou a olhá-lo, Joshua estava mais perto e puxou-a pela cintura unindo os corpos.
- Não amo a mãe de Diana. Nunca passou de uma amiga querida.
- Já vi que sim! E das mais queridas! - Mellisa tentou afastar-se dele, mas ele apertou-a mais contra o corpo - Estás a magoar-me.
- Posso concluir que estás com ciúmes?!
- Pensa o que...
Joshua sorria quando beijou os lábios dela. Ao início ela tentou afastar-se, mas quando sentiu uma mão acariciar-lhe o pescoço e outra tentar abrir caminho por debaixo da sua camisola, não consegui resistir e suspirou de prazer.
- Senti tanto a tua falta. - Joshua falava entre beijos.
- Preciso de ti, preciso de...
- Eu sei... - Mellisa falava tristemente - Precisas de alguém que seja uma mãe para a tua filha.
- Diana não é minha filha.
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