Mellisa olhava o mar pela janela da sala enquanto Joshua deitava Diana. Embora parecesse estar concentrada no vai-vem das ondas, não conseguia deixar de pensar no que dissera Diana. " O pai podia namorar contigo"!
Como se as coisas fossem assim de simples!
Ambos procuravam uma espécie de escape para a própria vida. Ele porque se sentia frustrado com Bianca e ela porque, apesar dos imensos fantasmas, sentia-se só! A única coisa simples era o desejo avassalador que os levava a passarem as noites juntos. Mas no mundo de Diana, as pessoas ou se gostavam ou não!
Ao vê-los beijarem-se pensou que eles gostavam um do outro... Na imaginação dela, se eles se namorassem, ela...
- Vais explicar-me o que aconteceu?
Mellisa voltou-se ao ouvi-lo. Olhava para ela com o sobrolho franzido, como se a culpa fosse dela. Se a filha tivera aquele ataque de choro a culpa era dele! E não ia permitir que ele dissesse o contrário!
- Não há grande explicação a dar. Pelos vistos é um hábito recorrente.
- Não te estou a entender!
- O facto de gritares com as pessoas. Ela ouviu-te ao telemóvel.
- Isso quer dizer que veio a casa.
- Sim.
Mellisa olhou para ele mais atentamente, mantinha o sobrolho franzido mas o seu olhar não mostrava qualquer emoção. Estava a tentar desviar o assunto?!
- Para...
- Ficou com fome.
- Ou seja, não tomou o pequeno almoço?!
- Claro que sim! - Mellisa colocou as mãos na cintura - Não sabia que a tua filha tinha horas marcadas para comer!
- Lógico que não têm.
- Pois não parece!
- Deus! - Joshua olhou o tecto.
- Pode ser que tenhas mais sorte que eu!
- Desculpa!? Mais sorte?!
- Sim! A mim não me ouve!
- Mas que se passa com as mulheres hoje?! - Joshua olhou para ela irritado - De que falas?!
- Deus! Não era com ele que falavas?! -Mellisa manteve o olhar furioso dele. - Ou também lhe gritas?!
- Contrariamente ao que possa parecer não costumo gritar.
- Segundo a tua filha é hábito recorrente. O que a deixa assustada!
- São situações esporádicas! E ela é apenas uma criança. Vai esquecer.
- Não, não vai! - Ela sentiu o seu interior ferver de raiva - Mas porque tendem a ignorar o que sentem as crianças?! Acaso acham que são marionetas?!
- Não é...
- Elas percebem o que se passa ao redor! - Mellisa interrompeu-o - Quando crescer, ela será o reflexo do que tu lhe deres agora! Não podes fazer e dizer o que te apetece só porque ela ainda é criança! Ou tratá-la como se ela fosse uma boneca! - Mellisa encarou-o - Diana assimila tudo o que lhe transmites.
- Não digo o contrário.
- Então começa a ter em consideração o que sente a tua filha!
- Que queres dizer com isso?
- Apenas que a tua filha detesta ouvir-te gritar. Que por algum motivo isso a assusta! E és um idiota se não percebes o muito que a magoas quando o fazes!
- Mas quem achas que és?! - Joshua segurou-lhe o pulso - Que sabes tu da minha vida?!
Mellisa olhou para a mão que segurava o seu pulso. Depois olhou para ele, estava furioso com ela e tinha razão. Acabara de lhe chamar idiota! Deus do céu!
- Tens razão. - Mellisa tentou retirar o braço - Desculpa. Não era minha intenção interferir na forma como educas a tua filha. Prometo manter-me afastada o máximo possível.
- Não foi com... - Joshua foi interrompido pelo telemóvel - Droga! Outra vez!? - Atirou com o aparelho para cima do sofá ao ver o número. - Mellisa, não pretendia... - Bolas! - Joshua olhou novamente o ecrã - Desculpa tenho de atender.
- Vou ver Diana.
- A conversa não terminou.
Mellisa concordou com a cabeça quando ele agarrou o telemóvel e atendeu bruscamente. Ela sentiu pena da pessoa que estava do outro lado da linha. Dedicara-se a defender Diana de tal forma que esquecera o seu lugar... Podia dormir com ele, mas contrariamente ao que pensava, isso não lhe dava esse direito! Era apenas a ama e estava quase de partida. Não podia esquecer isso. Mais uma semana e deixaria de ver o doce sorriso da pequena Diana... Era melhor manter-se afastada dele. O desejo que sentia por ele podia ser ignorado, abafado... Em poucos dias esqueceria Joshua. Não importava o muito que o desejava, o importante era Diana. Tinha de falar com ela e explicar-lhe que não havia nada entre o pai dela e ela, caso contrário Diana iria sofrer. E isso era a última coisa que ela queria.
Entrou sem fazer barulho no quarto de Diana, esta ainda dormia. Acariciou o cabelo da menina e sentou-se numa cadeira ao lado da cama. Por algum tempo ficou ali a olhar o corpo da menina que subia e descia consoante o ritmo da respiração. Pouco depois o suave movimento desapareceu da sua vista e foi substituído por uma outra criança deixada na casa dos tios com um urso de peluche nos pequenos braços.
- Onde está a mãe... - A frágil voz era abafada pelas lágrimas - E o pai?
- Voltam logo mais. Porque não brincas com os primos?
- Quero a mãe...
- Quando menos esperares eles estarão de volta.
Mas os pais não voltaram, nem nessa noite nem nas seguintes. Os anos foram passando e ela acabou por perceber que não iam voltar nunca mais. E se tinha dúvidas, elas terminaram no dia que ficara sozinha. A sua tia tinha ido ao hospital e ela ficara em casa. Numa gaveta encontrara um carta do seu pai. Tinha sido enviada um ano depois de a deixarem com os tios. Nela falava da estadia no hospital, que se tinha prolongado pois o tratamento não estava a fazer efeito. E partilhava as preocupações com a saúde da esposa. Tentando perceber o que tinha acontecido à sua mãe perguntou ao tio, mas este fora evasivo nas respostas. Respostas que nunca chegaram pois meses depois, quando voltou a perguntar pelos pais, o tio disse que os pais não voltariam. Chorou até lhe doer o peito e adormecer na cama húmida pelas lágrimas. Quando acordou tinha ao lado da cama um álbum de fotografias dos pais. Nunca soube o motivo da sua mudança para casa dos tios, nem porque os pais não regressaram. Durante a adolescência concluiu que os pais tinham falecido. Só isso explicava a enorme ausência.
Depois de deixar a casa dos tios, tentou por várias vezes, através de carta, saber o que tinha acontecido aos pais mas o tio nunca lhe respondera.
Com o tempo resignou-se e desistiu de saber a verdade e de lutar contra o vazio que a consumia.
Faty ajudara-a nessa batalha, e embora nem sempre fosse fácil, conseguia encontrar razões para sorrir. Agarrava-se ás pequenas alegrias que a vida lhe dava, e fazia delas o seu escudo para as horas más.
Com pouquíssimas recordações dos pais, insistia em guardar algo dos melhores momentos que ela vivia. Tudo o que a fizesse feliz era digno de ser recordado e insistira em fazer um álbum.
Sorriu ao recordar o cartão de boas festas que as colegas lhe enviaram quando partiu o pé. Até a fotografia dela como mãe natal, enviada pelas enfermeiras do hospital pediátrico, fazia parte dessas doces recordações. O seu álbum de recordações estava enorme. E as fotografias que tinha tirado com Diana teriam um lugar de destaque nele.
Fotografias que não tardariam a estar lá junto ás demais. Uma lágrima deslizou ao perceber os poucos dias que faltavam para regressar à sua vida no hospital. Iria sentir falta da menina, de Joshua...
- Mell?!
- Olá! - Limpou a lágrima ao ouvir a voz de Diana - Sentes-te melhor?
- O pai?
- Estava na sala.
- Ele ficou triste?
- Triste e um pouco preocupado.
- Eu gosto dele.
- Devias dizer-lho.
- Mas não gosto que grite. Ele grita e depois todos vão embora.
- Devias dizer-lhe isso também.
- Não quero que fique triste.
- Mas se não lhe disseres, ele não sabe como te sentes.
- Podias dizer-lhe tu?
- Era melhor seres tu a dizer. Queres que vá contigo?
- Sim.
Mellisa saiu do quarto segurando a mão de Diana. A menina apertava a mão dela a cada passo que dava. Quando chegaram à sala Joshua estava sentado de olhos fechados.
- Olha... - Diana sussurrou e puxou a mão dela - Está a dormir.
- Sentes-te melhor? - Joshua falou sem abrir os olhos.
- Sim - Diana olhou para ela - Pai?!
- Sim...
- Posso dizer uma coisa?
- Claro.
- Não gosto quando gritas. - Diana limpou um lágrima - E fico triste.
- Senta-te aqui.
Diana olhou para ela e depois de lhe sorrir ligeiramente retirou a mão devagar. Mellisa sentiu o coração encolher quando a viu sentar-se ao lado dele. Vê-los lado a lado recordou-lhe uma fotografia que ela tinha com o seu pai.
Sentindo as lágrimas eminentes deixou-os a sós e foi sentar-se na escadas da cozinha. Assim como eles, ela também precisava de estar a sós.
Horas depois saíram para passear junto à praia e tirando o facto de ela se afastar dele, tudo permanecia igual. Quando regressaram a casa Diana corria à frente deles cantando ao mesmo tempo que balançava Tedy.
- Parece que está mais animada. - Mellisa olhou para Diana melancolicamente.
- Eu disse que ela ia esquecer.
- Não. Ela não esqueceu. Guardou num cantinho, um dia vai recordar.
- Como podes ter a certeza?
- Acredita. Sei que é assim.
Mellisa acelerou o passo tentando afastar-se dele e esquecer aquela conversa mas Joshua acompanhou-a e segurou-lhe o braço.
- Diana está quase a chegar a casa.
- Deixa-a. - Ele segurou-lhe a mão com força obrigando-a a ficar - Não acabámos a nossa conversa.
- Eu tenho de pedir-te desculpas novamente, não pretendia ser indelicada.
- Não quero as tuas desculpas! Temos de...
- Pai! Pai! - Diana dirigia-se para eles - Pai, ela voltou!
- Quem?
- Bianca. - Diana olhou para ela. - Ela voltou.
- Sim?!- Mellisa ficou sem saber que dizer - Que bom!
Sentiu os olhos de Joshua sobre ela, por uns segundos olharam-se nos olhos em silêncio. Depois colocou-lhe Diana nos braços enquanto beijava a testa da filha com carinho.
- Fica com Mell.
- Sim papá.
- Dá-me uns instantes.
- Claro.
Mellisa olhou para ele sem perceber o que se passava e seguiu-o com o olhar até ele desaparecer na varanda. Uns instantes! Quanto era uns instantes?!
Sentou-se com Diana junto a umas rochas que estavam por perto e enquanto Diana brincava, ela tentava adivinhar o que se passava em casa.
Estariam a fazer amor?! Estariam a beijar-se?! Ou abraçados na mesma cama onde eles dormiram? O seu estado nervoso aumentava a cada segundo que passava. Olhou o relógio, tinha passado quase meia hora, quanto tempo mais ele precisava?! Porque não dava sinais que podiam regressar?! Porque pedira para ficar ali com a filha dele? Porque demorava tanto?!
- Tenho sede.
- Sim?! - Mellisa olhou para a menina.
- Podemos ir para casa?
- Sim, acho que sim.
Segurou a menina pela mão e dirigiu-se para casa. Se ele perguntasse algo, tinha uma boa desculpa. Diana tinha sede, e ela não tinha levado a carteira para comprar água. Certamente não ia querer que a filha ficasse com sede. Não é bom ficar muito tempo sem beber água com o calor que se fazia sentir.
Ainda pensava numa possível conversa com ele quando chegaram à escada da cozinha. Entraram e sentou Diana num banco. O silêncio que se fazia sentir levou-a a sentir náuseas. Aquele silêncio queria dizer que estavam "ocupados". Abriu a porta do frigorifico pensando porque se importava com isso! Ele estava comprometido com Bianca, era perfeitamente normal que acabassem na cama. Cama que tinha dividido com ela... Afastando aqueles pensamentos serviu água a Diana e sorriu-lhe.
- Posso ir brincar para o meu quarto?
- Não vejo porque não. - Mellisa ajudou Dana a descer do banco - Vamos.
Mellisa olhou para a porta da sala que Joshua usava como escritório quando algo caiu, seguido por vozes elevadas.
- Tu és louca!
- Louca?! Não me parece!
- Se achas que...
- Vamos linda. - Mellisa abriu a porta do quarto da menina e fechou-a o mais rapidamente que conseguiu tentando afastar a menina daquela discussão - Vamos brincar.
- Ela vai ficar?
- Não sei, o teu pai...
A resposta dela foi interrompida por uma porta a abrir furiosamente seguida de alguns impropérios. Temendo que os gritos se repetissem, ligou o telemóvel e colocou os fones a Diana pedindo-lhe que cantasse as músicas que estava a ouvir. Quando a menina começou a cantar, ela centrou a sua atenção nas vozes furiosas que estavam no outro lado da porta.
- Diz-me uma coisa. Já não precisas casar ou perdeste o medo de ficar sem Diana?
- Não te interessa.
- Vais arrepender-te.
- Talvez. Agora sai.
- Depois de ver Diana.
- Nem sonhes! Se não saíres em cinco segundos eu mesmo te expulso!
Pouco depois ouviu-se um carro partir e o silêncio instalou-se na casa. Mellisa ficou a olhar a porta, esperando que esta se abrisse, mas permaneceu fechada até que ela mesma a abriu para ir tomar duche.
Sentindo um aperto no coração que a fazia sufocar, sentou-se no chão do duche. As perguntas rondavam a sua cabeça como pássaros voando.
Porque sentia o peito em pedaços ao pensar nele com Bianca?! Porque lhe doía toda aquela sensação?! Toda aquela dor era por Diana!? Porque se identificava com a menina?! A sua mãe não a abandonara como Bianca! Pobre Diana! Que tipo de mãe era Bianca?! Que tipo de mãe usa a filha para ficar com um homem?! Para casar com Joshua?!
Durante o jantar nenhum mostrou grande apetite e as conversas, geralmente animadas, eras forçadas pela boa educação. Quando Diana disse que queria ir para a cama, ele disse que ia passear um pouco. Horas depois Mellisa deitou-se sem que ele tivesse regressado.
- Mell!? Mell...
Mellisa abriu os olhos ao sentir como a sacudiam. Acendeu a luz e viu Diana a olhar para ela com os olhos cheios de lágrimas.
- Estás bem!? - Ela olhou para o relógio, eram duas da manhã - Que se passa?
- Posso dormir contigo?
- Claro! Vem...
- Não deixes que me leve.
- Ninguém te vai levar. - Mellisa ajeitou a menina junto ao seu corpo e abraçou-a - Ninguém...
- Mell?!
- Sim.
- Gosto de ti.
- Eu também gosto muito de ti.
À medida que a respiração de Diana abrandava, as lágrimas dela aumentavam. A vida de Diana era muito semelhante à dela. Se ao menos "madame" Bianca percebesse quanto magoava a filha. Se falasse com ela, talvez madame entendesse! Explicando o muito que ela sentia a falta da mãe, talvez a fizesse entender que Diana sofria com a ausência dela e as discussões entre eles. Sim! Era isso que ia fazer. Ia falar com ela. Pela manhã...quando... acordasse...
- Mell!!!
Mellisa sentou-se na cama ao ouvir a porta bater com força na parede.
- Que...
- Diana... Ela não... - Joshua olhou para a cama e depois para ela. - Deus!
- Podes falar mais baixo?! Acordas a tua filha!
- Não imaginas... - Ele aproximou-se da cama e voltou a olhar para ela - Pensei...
- Apareceu aqui ao início da noite. - Mellisa sussurrava. - Se soubesse que ias ficar assim tinha...
Mellisa viu-se silenciada por um doce beijo. Algum tempo depois de Joshua abandonar o quarto, ela ainda sentia as mãos dele segurando o seu rosto enquanto a beijava ternamente nos lábios.
O som familiar tocava ao longe, pouco depois silenciava-se e recomeçava. Mellisa sentou-se rapidamente na cama ao reconhecer o toque do seu telemóvel. Atendeu ao mesmo tempo que olhava para Diana dormindo.
- Faty?!
- Olá. Que voz é essa!? Acordei-te!?
- Sim. A noite foi um pouco atribulada.
- Espero que por um homem loiro e de olhos azuis.
- Não... Uma menina loira e de olhos verdes.
- Bolas...
As duas riram, fazia tempo que ela não se ria tão descontraidamente.
- Ligaste. Está tudo bem?
- Sim. Queria apenas comentar o que descobri.
- Descobriste?!
- Sim, sobre a madame.
- Ficaste de descobrir algo?!
- Apenas fiquei curiosa. Por isso perguntei!
- E então?!
- Prepara-te. - Faty fez uns instantes de silêncio - Estás preparada?
- Diz de uma vez. Até parece que vais revelar algum caso confidencial!
- Quase. Madame não é a mãe de Diana. Acreditas?!
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