quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O Padre VI parte


 



Ao abrir o portão Valerie respirou profundamente.  O carro de Steven estava em frente à porta principal mas não havia sinal dele.  O seu coração batia agitado e nem a voz de Tim, que cantava na estufa, a fez abrandar o passo enquanto se dirigia às traseiras da casa. Preferira entrar pela cozinha pois talvez desse a ideia que estava em casa à mais tempo e assim evitasse qualquer tipo de perguntas que Steven pudesse fazer. Tentando agir com uma naturalidade que não sentia tirou uma chávena do armário e encheu-a de café. Respirando fundo dirigiu-se à sala onde a voz alterada de Steven se fazia ouvir.

- Mas porque é tão teimosa?
- Teimosa?! Se na tua perspectiva sou teimosa por não querer a tua ajuda então sou.
- Não sabia que tinhas chegado. - Valerie fingiu não perceber o ar carregado que existia entre a mãe e o marido enquanto se dirigia a este para lhe beijar o rosto - Fizeste boa viagem?
- Sim. - Steven olhou-a fixamente - Estás doente? Pareces acalorada.
- Retomou as caminhadas. - Lana não deixou a filha responder - Sinceramente não percebo porque depois de casar deixou de fazer.
- Eu também não percebo muita coisa.

A forma como Steven olhou para ela indicava que estava, no mínimo, irritado. Por isso quando ele disse que precisava de falar com ela, e começou a caminhar em direção à biblioteca, seguiu-o sem dizer uma palavra. Ela conhecia-o bem demais para saber que era exatamente isso que ele esperava. Obediência cega!
 Apesar do curto trajeto o medo instalou-se e as perguntas começaram a "bailar" na sua cabeça. Porque não esperava até estarem na privacidade do quarto para falar com ela? Porque estava tão exasperado com a sua mãe? Porque lhe parecia mais nervoso que quando partiu? Alguém a teria visto com Erick e o teria alertado para esse facto? Não fazia nada de mal mas sabia que o marido não via a situação assim.

- Fecha a porta. 

 Steven caminhou até à janela e ficou de costas para ela o que aumentou o seu nervosismo.

- Está tudo bem? - Valerie tentou transmitir uma calma que não sentia - Pareces preocupado.
- Sim e não.
- Não entendi.
- Está tudo bem comigo mas a situação é mais complicada do que eu pensava. - Steven voltou-se e olhou-a fixamente - Na verdade a situação complicou-se nestes últimos dois dias. Sinceramente pensei que conseguia resolver tudo rapidamente mas não contava com este percalço. E do modo como as coisas estão não me posso ausentar da cidade.
- Se a tua presença é indispensável entendo que não possas regressar. - Ao perceber que o nervosismo dele tinha outro motivo que não ela sentiu-se à vontade para conversar normalmente - Sei que te preocupas mas não estamos sozinhas.
- Queria ajudar, compensar a tua mãe de alguma forma mas ela insiste em manter-me afastado.
- Depois da última conversa que tiveram era de esperar. Mas, compensar?! Não entendo porque...
- Não interessa. - Steven não a deixou continuar - Como a situação se alterou não me pareceu correto avisar por telefone e muito menos por mensagem!
- Isso quer dizer que me deixas ficar?
- Acho que deverias ficar com a tua mãe.  Afinal não é mais nenhuma jovem.
- Claro. 

Valerie não sabia que pensar. Havia algo que lhe escapava. O Steven que ela conhecia não iria permitir que ela ficasse onde ele não a pudesse controlar e no entanto ali estava ele anunciando que iria ficar mais uns dias na cidade. Não estava sozinha, estava com a sua mãe mas algo de muito grave tinha acontecido na empresa para ele agir assim. Estariam com problemas financeiros e seriam estes tão graves a ponto de terem de mudar o seu estilo de vida e em virtude disso ele estava uma pilha de nervos? Pensaria ele que se ficassem pobres ela teria coragem de o deixar? Não... ele sabia que ela tinha medo dele. Teria que ser outro motivo. Ele só podia ter medo de não poder mais usufruir de tudo o que estava acostumado. Seria isso?! Por muitas perguntas que ela tivesse sabia que não adiantava perguntar, o marido jamais lhe responderia. Não com uma resposta franca. Naquele momento sentiu saudades do padre August e dos seus sábios conselhos.

Steven partiu depois do almoço e mal o carro desapareceu por entre as árvores ela só conseguia pensar que podia continuar as caminhadas com Erick. Pensar nas caminhadas e nas longas conversas com Erick deixava-a mais animada. O que lhe indicava o quanto precisava de um amigo, de alguém com quem conversar. 

- Um chocolate pelo motivo desse sorriso.
- Hum?!
- Estás no mundo da lua. 
- No mundo da lua?! - Valerie olhou para a mãe perguntando-se se estaria a sorrir - Acho que estar aqui está a afetar o seu raciocínio.
- Pois sim... - Lana agarrou a mão da filha e olhou-a seriamente - És feliz com Steven?
- Que pergunta é essa?
- Uma pergunta como outra qualquer. Não posso mostrar interesse pela vida da minha filha?
- Claro que sim!
- Então?! És feliz.
- Tanto como uma mulher pode ser. 
- Menina. - a voz e Tim chegou até elas desde a cozinha - Menina...
- Estamos na sala. 
- Desculpe incomodar mas achei que gostaria de ver uma coisa. 
- Que aconteceu? - Lana levantou-se rapidamente - Espero que não sejam mais problemas.
- Depende do que considera um problema.

Mal terminou da falar Tim voltou costas às duas mulheres não lhes deixando outra alternativa a não ser ir atrás dele. A mente de Valerie divagava tentando perceber o que seria de tão urgente mas por muita imaginação que tivesse não estava preparada para o que as esperava. 

- Ali naquele canto. Conseguem ver?!
- Não estou a ver nada de mais. - Lana aproximou-se mais do local que Tim indicava - São apenas latas velhas.
- No meio das latas... - Tim olhou para Valerie - Acho que está ferido.
- Ferido?! - Valerie aproximou-se das latas e ouviu um bufo que lhe causou arrepios. - Que é?
- Um gato.
- Um gato?! - Lana olhou para Tim - Está ferido?
- Ferido ou assustado. 
- Acho melhor irmos embora para não o irritar ainda mais
- Oh Deus Valerie... - Lana soltou uma gargalhada - É apenas um gato assustado não um leão. Vai buscar algo que ele possa comer. 

Valerie correu em direção à cozinha para regressar com fiambre e frango cozido. Para sua surpresa o animal não se aproximou quando colocou a carne perto dele preferindo eriçar o pêlo e arquear as costas. Naquele momento foi notória a enorme barriga do animal dando a perceber que era uma gata e a julgar a barriga estava quase a ter as crias. 

- Pobre criatura... O medo é maior que a fome. - Lana agarrou no braço da filha - Vamos deixá-la à vontade. - Olhou para Tim - O barracão pode esperar mais uns dias. 
- Claro. Vou começar no...
- Vamos dar o dia por terminado.  - Lana interrompeu Tim - Amanhã é outro dia.

Tim agradeceu a tarde livre e elas regressaram a casa. A mãe sentou-se junto à lareira e retomou a leitura. Valerie sorriu ligeiramente ao ver que a revista estava de cabeça para baixo. Abriu a boca para dizer algo mas o olhar perdido da mãe fê-la optar por a deixar só. Algo naquela gata afetou a sua mãe. Sem dizer o que fosse saiu da sala e foi até ao quarto apanhar uma das suas camisolas para servir de cama ao pobre animal.
O fim de tarde anunciava chuva e ela não conseguiu deixar de ir confirmar se a gata teria aceite a nova "cama". Sentiu pena daquele ser que apesar de esfomeado e cheio de frio não consentia que se aproximassem. Mas iria insistir, não iria desistir assim tão facilmente. 

Mal dormiu essa noite pensando no quão frio estava lá fora e assim que o dia nasceu vestiu o fato de treino e agarrando um pedaço de bacon dirigiu-se ao barracão. A pouca luminosidade não lhe permitiu ver a gata mas o frango que tinha deixado no dia anterior tinha desaparecido o que era bom sinal. Deixou o bacon sobre o prato e sentiu-se tonta por, com voz calma, anunciar que o pequeno almoço estava servido. 

Ainda sorria quando avistou Erick. Sentindo um calor reconfortante no peito levantou o braço.

- Fico feliz por teres vindo. - Erick sorriu para ela.
- Eu também. - Valerie olhou-o tristemente - Mas dentro de dias tenho que regressar a casa. 
- O segredo da vida é aproveitar o presente. - Erick estendeu-lhe a mão - Vamos?
- Claro. 

Aceitar a mão dele parecia a coisa mais natural do mundo e, querendo ser sincera, gostava da sensação de conforto que o calor dele lhe transmitia mas pouco depois, com a mesma naturalidade com que lhe deu a mão, assim a soltou, o que lhe causou um vazio.
Tentando não pensar no motivo de tal ato nem querendo aprofundar o motivo de tal vazio falou-lhe do animal assustado e das suas incertezas quanto ao melhor modo de ganhar a confiança dele. Segundo Erick persistência e paciência eram suficientes. E ele estava certo que ela era teimosa o suficiente. Falar em teimosia recordou-lhe Steven, ele dizia que esse era um dos muitos defeitos que ela tinha. Temendo entregar-se aos pensamentos negativos que a invadia sempre que pensava no marido entregou-se à curiosidade.

- Onde vamos?
- É surpresa.
- Espero que seja boa.
- Acho que vais gostar. Ontem, depois de me deixares, estive a conversar com um dos guias turísticos e falou-me neste lugar. Depois da descrição dele percebi que não me iria perdoar se fosses embora sem o ver.

Algo na voz dele a fez sentir um nó na garganta e esquecer Steven. Parecia haver dor nas palavras dele... 

- Lamento imenso ter-te deixado sozinho. 
- Sabias que este carreiro fazia parte do itinerário dos turistas mas que foi retirado para preservar a natureza? - Erick fez uma careta e continuou como se ela não tivesse dito nada - Os turistas começaram a deixar a sua "marca" e não restou outra alternativa.
- A sua marca?!
- Plásticos, pontas de cigarros, lenços, sacos de papel e tudo o mais que o ser humano engloba. 
- Que horror!
- O guia explicou-me que tiveram que refazer os folhetos de modo a ocultar este trajeto e camuflar os caminhos com arbustos e árvores velhas para impedir a passagem do homem.
- E como conseguiste que te falasse nele? 
- Duas garrafas de gin e a promessa que não ia falar dele a ninguém fizeram o trabalho.
- Estou a ver... - Valerie sorriu - És muito bom a guardar segredos.
- Há quem os guarde melhor que eu.

Valerie notou que a voz dele ficara diferente e ficou em silêncio. Os passos na terra batida pareciam ecoar na sua cabeça. Ele estava aborrecido. Estaria a referir-se a ela? Afinal não lhe falara de Steven.  Sabia que era casada, infeliz era certo, mas casada e não tinha costume de falar dos seus problemas. Não falara no assunto nem à sua mãe porque deveria desabafar com ele? Na verdade pensara em falar com ele mas não queria "manchar" a amizade deles com um assunto tão desagradável. 

- Chegámos.
- Aqui?! 
- Um pouco de paciência mulher. 

 Erick desviou um ramo que pendia de uma árvore deixando a descoberto um outro carreiro e voltou a colocar o ramo da mesma forma que o encontrou.

- Uma promessa é uma promessa. Não devemos ser os únicos curiosos na vila.
- Certamente não seremos mas julgando as nuvens duvido que alguém se lembre de sair a passear.
- Nós estamos aqui.
- Verdade...
- Imagina que por casualidade um admirador da natureza passa aqui perto e vê o caminho? Lá se vai a minha promessa.
- Já não está aqui quem falou.
- Não?! Onde andará?!
- Tens muita piada. - Valerie sorriu ao perceber que ele tinha recuperado o bom humor.
- Uma das minhas muitas qualidades.
- E modesto!
- Olha. 

Valerie olhou na direção que ele indicava e não acreditava no que via. Como era possível, que ali no meio da densa mata, ainda se mantivesse de pé um moinho?! Estava velho, notava-se pela pintura e na madeira por tratar mas pelo lento rodar da velas, que estavam rasgadas, parecia funcionar. 

- Que lindo!
- Vamos entrar?
- Podemos?!
- Não há sinalização em contrário. - Erick tirou uma chave do bolso - O que uma boa conversa não faz. 
- A conversa ou a garrafa?
- Talvez as duas. Mas seria meio passeio se não entrássemos. E aposto que vais gostar do que está para lá do moinho.

Sem perceber porquê deu-lhe uma pancadinha no braço com fazia com os seus amigos de infância.

- Não é justo! Já aqui estiveste.
- Eu? Claro que não.
- Então como sabes o que está no outro lado?
- O guia. Lembraste?
- Pois sim...

Naquele momento umas gotas caíram no rosto dela e ela sorriu. Recordou as vezes que brincava à chuva quando era criança e fechando os olhos virou o rosto para o céu. Como ela gostava de andar à chuva...

- É melhor corrermos ou acabamos por nos molhar!
- Não importa.
- Não?! 

Durante uns segundos olharam-se mutuamente enquanto as gotas de chuva molhavam os seus rostos. Valerie sentiu um arrepio ao perceber que podia perder-se nos olhos dele.

- Estás com frio. 

Sem esperar resposta Erick despiu o casaco e colocou-o sobre os ombros dela. Ela seguiu as suas mãos durante os breves segundos que durou aquele gesto e podia jurar que o mundo tinha parado naquele instante. Arriscou-se a levantar o rosto e pode sentir o calor da respiração dele nos seus lábios.  
Sentiu a mão dele no seu rosto e institivamente entreabriu os lábios. Um novo trovão tirou-a do torpor que sentia e Erick dirigiu-se a passos largos em direção à porta, que demorou um pouco a abrir. Mal entrou tossiu ligeiramente devido ao ar bafiento. Ela seguiu-o envergonhada por ter reagido como uma adolescente a um gesto inocente.

- Que cheiro a mofo! - Valerie tentou quebrar o silêncio que reinava entre eles - Deve estar fechado à imenso tempo. 
- Possivelmente. 

 Erick abriu as portadas das janelas a fraca luz do dia iluminou o interior. Uma mesa de madeira estava no centro e uns cadeirões estavam colocados junto à lareira. Um cesto de vime, ainda com madeira, estava num dos lados da mesma. Um candeeiro pendia do alto teto e umas cortinas, de pesado tecido, substituíam as portas. Recordou que a sua mãe lhe tinha dito que antigamente as pessoas não tinham portas dentro de casa. Não conteve a curiosidade e desviou o sujo tecido descobrindo assim o espaço dedicado à privacidade do casal.
O quarto tinha uma cama de madeira castanha e duas mesas redondas que foram improvisadas com o que outrora fora um tronco de árvore. Uns candeeiros de metal amarelo e uma vela, acompanhada por uma caixa de fósforos, completava o conjunto. Numa das paredes um enorme armário de duas portas e na parede em frente à cama duas cadeiras pintadas de branco e um baú castanho foram colocados estrategicamente de modo a deixar entrar a luz do dia pela janela, que lhe pareceu enorme para um quarto mas que ao mesmo tempo lhe dava um encanto especial. A sua mente romântica levou-a a passar a mão sobre a velha colcha e a deitar-se na cama. Podia ver-se as árvores bailando ao sabor do vento e as gotas de chuva que batiam na vidraça. Devia ser lindo acordar ali e ter aquela vista. Um som ali perto fê-la saltar da cama como se esta tivesse picos e dirigiu-se á casa de entrada. 

Não viu Erick e levantou o outro tecido abrindo assim a "porta" da cozinha. No centro do espaço uma mesa redonda, rodeada por cadeiras, com um cesto vazio em cima davam as boas vindas aos comensais.
Pratos e copos estavam colocados num móvel com portas de vidro. Uma pia de pedra junto à janela da cozinha onde uma aranha fizera o seu lar. Algumas caixas empilhadas e uma cesta enorme numa das paredes. Tudo ali dava a sensação que os donos iriam entrar a qualquer momento.

- As janelas lá de cima deram um pouco de trabalho mas consegui abrir.
- Têm outro andar?
- Sim, dois quartos com casa de banho e uma salinha.
- Parece que pensaram em tudo.
- Era para ser um alojamento turístico mas desistiram. 
- É pena mas julgando o que fizeram no carreiro não é de admirar. 
- Não me parece que seja para muito tempo.
- Então?
- Achas que a nova geração irá pensar primeiro na natureza que no lucro?
- Depende da educação que...

Naquele momento um rato correu pela cozinha e Valerie soltou um grito ao mesmo tempo que agarrou o braço dele.

- É apenas um rato.
- Assustou-me. - Temendo repetir a situação constrangedora anterior afastou-se dele - Não estava à espera. 
- Vamos ver lá atrás? 
- Ainda está a chover. É melhor devolver-te o teu casaco.

Valerie começou a puxar o fecho mas ele segurou a mão dela o que provocou um novo arrepio pelo seu corpo. 

- Não chove assim tanto. 

Desta vez Valerie permitiu-se sentir o calor dele e não se afastou quando ele se aproximou de tal forma que podia sentir o calor mas Erick voltou a afastar-se dela. O que a deixou desconcertada. Não tanto pelo gesto dele mas porque não entendia porque ele a afetava tanto. Gostava da companhia dele, só de pensar que estaria com ele era suficiente para sorrir. 

- Vens?
- Estava só... 

Pensou melhor e preferiu dizer nada. Não tinha porque justificar os seus silêncios e muito menos dizer o que lhe ia na cabeça durante os mesmos.
Se já gostava do moinho passou a gostar ainda mais ao descobrir o lago que se estendia por uns bons metros. Não muito longe podia ouvir-se uma queda de água. 

- Este lugar é mágico. Realmente seria uma pena estragar toda esta flora. 
- Sabia que ias gostar. 

Valerie começou a caminhar em direção ao lago mas escorregou e agarrou-se ao braço dele.

- É melhor voltarmos outro dia. Um dia que não esteja tanto frio nem chuva.
- Pode estar a chover.
- Que doidice é essa com a chuva?
- Achas que sou doida por gostar de chuva?
- Não foi isso que quis dizer mas não encontrei palavra melhor.

Os dois riram e depois de fechar o moinho tomaram o caminho da vila. A conversa com ele era tão fácil que achou o percurso curto demais. 

- Café ou chocolate quente?
- Café.

Falavam de trivialidades quando se começou a ouvir uma voz irritada. Os poucos ocupantes da pastelaria calaram-se e fixaram a atenção na mesa do fundo da pastelaria. Ela sentiu o corpo gelar quando o homem puxou violentamente o braço da companheira enquanto gritava que não ia tolerar aquilo, se ele dizia que iam embora era isso que fariam. Baixou o olhar quando Erick se levantou e se dirigiu à mesa deles. O som de cadeiras a cair fê-la estremecer e temer por Erick. Mas ele não se afastara muito dela pois o casal saíra pela porta lateral e fora a abrupta saída que dera lugar à queda das cadeiras. Ainda tremia quando Erick regressou á mesa seguido pela dona do local que pediu desculpas pela situação e ofereceu os cafés.

- Não percebo porque certas mulheres aguentam estas coisas.
- Às vezes não é tão fácil como parece.
- Claro que é. Basta dizer não e depois cada um vai para seu lado. Para isso existe o divórcio. Não me entendas mal, não sou a favor. Aliás, acho que o casamento é para sempre. Mas certas coisas são inadmissíveis. Chega um momento em que há que deixar ir, deixar para trás. Não há nada que justifique
uma convivência assim, tóxica. Muitas vezes não acaba bem.

Ao ouvir aquelas palavras não conseguiu conter as lágrimas e Erick agarrou a mão dela o que originou um aumento do choro. 

- Estás bem? Nunca iria imaginar que uma cena destas te iria afetar de tal forma. Não é...
- Sou vitima de violência domestica. 

Valerie olhou para ele ao perceber que tinha dito aquilo em voz alta. O rosto dele mostrava surpresa, incredulidade até. 

- Como?!
- Não é fácil de explicar. E nem sempre se pode deixar para trás. Principalmente quando há outras pessoas envolvidas.
- Tens filhos?
- Filhos?! Não! Nunca quis. 
- Então...
- Estava a falar dos meus pais. 

Rodando a chávena vazia abriu o seu coração como nunca o fizera. Algo na expressão dele recordou-lhe o padre August, o seu confidente e amigo. E por isso acabou por lhe contar tudo. Como se ele pudesse fazer uma espécie de milagre no seu desastroso casamento.
E quando terminou ele parecia incrédulo e uma sombra pairava no seu olhar. 

- Deves de o amar muito.
- Amar? Acho que nunca o amei.
- A ver se percebo, não o amavas mas mesmo assim aceitaste casar. 
- Já te disse, pelos meus pais. Nunca tive interesse por ninguém e a minha mãe...
- A tua mãe... ela deveria ser a primeira a dizer-te que não eras um bicho raro por nunca teres interesse em rapazes. Tudo acontece no momento certo e não somos robôs pré-programados.
- Pois. Percebi isso tarde demais. 
- Nunca é tarde demais. - Erick fez sinal para trazerem outro café - Acho que está na hora de pensares em ti e por ti.
- Não posso.
- Como não? Passaste a vida a fazer o que os outros querem. O que esperam de ti.
- Não foi bem assim.
- Pois eu acho que foi. Casaste porque os teus pais queriam e deixaste de fazer coisas que gostas pelo teu marido. É normal durante a infância, e algum tempo da juventude, obedecer aos pais mas não achas que está na hora de virar a mesa?
- Acho que é melhor regressar. - Valerie levantou-se - A minha mãe deve estar preocupada.
- Gostava de te acompanhar mas não quero arranjar-te problemas.
- Steven não está.

Ele tinha razão, podia arranjar-lhe problemas mas naquele momento não queria estar sozinha. O  silêncio permaneceu entre eles por uns instantes. Era como se já não soubessem agir naturalmente. Naquele momento umas gotas envergonhadas começaram a cair e ela sorriu. 

- Chuva...
- Ela lava a nossa alma. Sempre que ando à chuva sinto-me leve, como se deixasse algo novo em mim.
- Uma gripe ou pneumonia conta?!
- Que drástico.

Os dois riram e apressaram o passo até ao solar. Despediu-se de Erick no portão e entrando pela cozinha correu até ao quarto. Precisava de um duche. Não tanto para aquecer o corpo gelado mas para colocar as ideias em ordem. Ainda não tinha assimilado o fato de ter revelado a Erick o que nunca contara nem à sua mãe. Esfregou o corpo vigorosamente e vestiu umas calças de ganga e uma camisola de gola alta. Olhou pela janela, a chuva que iniciara envergonhada começara a cair copiosamente. Enquanto descia as escadas deu por si a perguntar-se se Erick teria chegado a casa sem se molhar demasiado. O que a levou a pensar numa outra coisa. Não sabia onde ele vivia. Viveria longe dali? 

 










Sem comentários:

Enviar um comentário