domingo, 20 de agosto de 2017

APÓS O ENTARDECER





- ... estarei à sua espera no aeroporto. Se tiver alguma dificuldade não hesite em contactar-me.
- Obrigada.


Mellisa desligou o telemóvel sorrindo. Ela não acreditava no destino, sempre achou que as pessoas traçavam o seu próprio caminho. Mas se pensasse nos últimos dias tinha de repensar as suas crenças, pois era graças a um acaso que ia realizar um dos seus sonhos.
Finalmente iria conhecer o Brasil e as suas extensas praias.
Na verdade ia em trabalho, mas era um trabalho agradável e diferente do que desempenhava no hospital, onde trabalhava como administrativa e onde fizera o estágio profissional.
Sorriu amargamente ao recordar aquele tempo...

Tinha completado os dezoito anos à poucos dias quando percebeu que os seus sonhos se desmoronavam e tinha de decidir que fazer da sua vida.

Quando foi morar com os tios era a única menina numa casa onde só havia rapazes. Naquela altura tinham três filhos, mas a tia estava grávida. Esperava-se a menina, mas nasceu mais um rapaz. Na tentativa da tão esperada menina, no ano seguinte voltou a ficar grávida e a gravidez foi bastante complicada, o que obrigou a que ela, embora tivesse apenas dez anos, começasse a cuidar dos primos mais novos quando regressava das aulas. O tio não gostava que ela descuida-se os estudos, mas a tia insista em que seria apenas temporário e que no ano seguinte tudo voltaria ao normal. Por isso quando a tia ficou novamente grávida não queriam acreditar e ficaram um pouco desorientados quando souberam que eram gémeos!
Com quatro crianças pequenas, o trabalho aumentou imenso, e ela começou a frequentar as aulas apenas no período da manhã, assim podia cuidar dos pequenos durante a tarde para que a tia pudesse descansar.
Embora cansada, pensou que era mais uma na família, mas quando fez dezoito anos percebeu que o primo a achava muito mais que isso... Ainda sentia a respiração dele no seu rosto quando naquela tarde de chuva tentou beijá-la.
 Fugiu para casa tão rápido quanto conseguiu e escondeu-se no quarto. O primo não voltara a tentar nada mais, talvez porque ela não era experiente como as raparigas que ele costumava levar a andar de mota nos domingos... Nem pestanejava encantada quando ele passava... Fosse como fosse, ela não queria nada com ele, esperava apaixonar-se por um homem de cabelo loiro e de olhos azuis. Mas aquela tentativa de beijo frustrada, levou-a a evitar o primo durante os dias seguintes e a tia começou a estranhar a atitude dela.

Perante a insistência da tia acabou por lhe contar, mas a tia ficou irritada com ela e entre outras coisas horríveis, disse-lhe que era mentirosa como a mãe, que imaginava que todos os homens estavam perdidos de amores por ela.
O tio chegara nesse instante e, depois de se assegurar que ela estava bem, começara a discutir com a esposa. Ao inicio não compreendia as frases isoladas que mal se percebiam devido ás lágrimas da tia.  Mas quando o tio disse que nunca devia de ter casado quando ela ainda amava o irmão dele, Mellisa ficou mais atenta e pouco depois percebeu tudo.

A tia tinha amado o pai dela, seu cunhado. Tinham sido namorados mas segundo a tia, a mãe dela tinha-o enganado dizendo que estava gravida. E ela teve de se contentar com a cópia dele. A tia soltou uma gargalhada rouca quando disse aquilo.

Aí ela deixou de prestar atenção e olhou para eles enquanto discutiam. Como era possível que o tio se tivesse sujeitado a viver com uma mulher que amava o irmão?! Amava-a assim tanto?!

Percebeu que sim quando nessa noite eles saíram para jantar como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte o tio chamara-a à cozinha e pedira-lhe que deixasse a sua casa assim que pudesse. Pois tê-la ali era reviver o passado diariamente. Aceitara-a porque era sua sobrinha, mas agora ela era maior de idade e podia seguir em frente. E ele queria viver o resto da sua vida em paz.

Percebia o ponto de vista do tio, ele tinha todo o direito de viver ao lado da mulher que amava. Não precisava de um fantasma a recordar-lhe o passado. E ela não precisava do primo a olhá-la com lascívia!

Nessa noite mudou-se para uma pousada na cidade. Mas o dinheiro que tinha não dava para muito tempo. Se queria sobreviver precisava arranjar trabalho.

Sem ter para onde ir, nem mais ninguém a quem recorrer, recorreu à única pessoa que a podia ajudar. Faty, sua amiga de infância. Esta acabou por lhe arranjar trabalho em part time, na empresa de organização de eventos onde trabalhava, e por dividir o pequeno apartamento com ela. Graças à amiga conseguiu concluir os estudos.
Nunca esqueceria o que Faty fez por ela. Por isso quando esta lhe telefonou preocupada, pois a sua mãe adoecera e precisava de alguém que a substituísse, não teve coragem de lhe negar ajuda.

Faty aproveitava as suas férias para cuidar de crianças. Era uma boa forma de ganhar algum dinheiro extra e conhecer o mundo. E se a mãe não tivesse adoecido, Faty iria até ao Brasil, onde cuidaria de uma menina, filha de um casal amigo dos seus patrões, para que os pais pudessem desfrutar de um tempo a sós.

Conhecendo a paixão dela pelo Brasil e como ela tinha experiência com crianças, Faty pediu-lhe que a substituísse. Pedido que ela aceitou de imediato. Mas depois achou que a madame, como não a conhecia, não ia consentir que uma estranha cuidasse da sua pequena filha. Afinal a menina tinha apenas três anos e, segundo Faty, era muito apegada aos pais.

Mas percebeu que estava enganada pois acabara de falar com a mãe da pequena Diana. Ainda não queria acreditar, ia mesmo ao Brasil! Adormeceu sonhando com as praias de água cristalinas e areias brancas.

No dia seguinte, quando chegou ao trabalho, explicou a situação e trocou a última semana com uma colega para estar disponível na data pretendida.
E pela primeira vez em cinco anos, achou os poucos dias de trabalho que restavam intermináveis.



Mellisa olhou as nuvens que passavam a seu lado enquanto recordava o pouco que sabia sobre a praia onde passaria o próximo mês.

Já ouvira falar da praia de Fernando de Noronha, mas ver as coisas com os próprios olhos era muito diferente de ver fotografias. Tinha muito que descobrir, e embora ficasse com Diana, ela estava certa que arranjaria forma de o fazer.

Ainda não sabia com exactidão onde ia ficar, pois  quando o perguntou à madame, esta apenas lhe respondera que não se preocupasse com coisas triviais. Que o alojamento, assim como todas as despesas, seriam pagas por eles.

Consciente que levava o cartão de crédito esqueceu o assunto e dedicou-se a coisas menos " triviais" como a visita aos locais que desejava conhecer. Tais como a Baía dos Golfinhos, a Baía do Sancho e Baía dos Porcos. Estes eram apenas alguns dos pontos a visitar, tinha a esperança que a pequena gostasse de passear.
Esperava poder apreciar algumas das mais lindas paisagens ao pôr-do-sol, segundo amigos que tinham visitado aquela praia, não havia pôr-do-sol mais lindo que o pôr-do-Sol no Mirante do Boldró (Bar do Portinho), que em determinada época se punha entre as ilhas Dois Irmãos formando uma imagem inesquecível.
Das coisas que os amigos falavam apenas dispensava os mergulhos, e embora fosse uma das melhores atracções da ilha, agradeceu a pouca idade de Diana. Certamente não lhe proporiam nada semelhante!

Respirou fundo ao sentir as rodas embater no chão. Naquele instante percebeu que se esquecera de perguntar se era necessário levar algo que a pudesse identificar.  O melhor a fazer era estar atenta a alguma pessoa que lhe parecesse procurar alguém.


Naquele momento sentiu-se um pouco nervosa, ela tinha ajudado a tia a criar os seus filhos mas estaria preparada para cuidar de uma criança por dias seguidos?! Recordou as recomendações de Faty...

A sua prioridade era cuidar de Diana. Tinha de organizar o dia da menina e informar os pais sempre que saísse. As refeições seriam em família e esperavam contar com ela.
Não podia esquecer que madame Bianca não gostava de ser tratada pelo nome, em todas as ocasiões tinha de a chamar de madame. Algo que ver com a descendência aristocrática desta.
Faty não lhe disse como devia chamar o marido da madame. Duque?! Conde!? Visconde?!
Teria de lhe perguntar, assim como a forma pela qual devia tratar a pequena Diana. Só esperava não ter de tratar a menina por madame ou algum outro titulo monárquico.

Mas se assim fosse, apenas o faria quando eles estivessem presentes. Não iria incutir na criança o sentimento de superioridade em relação aos demais!
O seu estado nervoso aumentou ao perceber que não sabia como comportar-se diante de pessoas com um estatuto tão elevado! No seu dia a dia não lidava com esse tipo de pessoas!

Respirou fundo... Estava nervosa e isso não ia ajudar em nada.
Possivelmente seriam raras as ocasiões em que se iriam encontrar. Na melhor das hipóteses eles fariam as refeições fora e ela ficaria a sós com a menina. Talvez os visse ocasionalmente, quando tivessem de estipular as suas horas de descanso. Pois tinha direito a duas horas diárias para fazer o que bem entendesse. Apenas tinha de combinar com eles qual era o melhor momento para desfrutar da praia.
Duas horas... Horas que iria aproveitar para descobrir a localidade. Ou até ter um fugaz romance de Verão...

Uma mulher passou por ela apressada batendo-lhe com a bagagem nas pernas e acordando-a das suas divagações.

Olhou em redor, as pessoas começavam a abandonar o aeroporto. Sentou-se numa cadeira e colocou a mala ao lado.

Por algum tempo observou as pessoas que continuavam a entrar e a sair sem que alguém a abordasse.
Olhou o relógio e percebeu que tinha chegado à meia hora atrás. Agarrou o telemóvel para telefonar, mas recordou as recomendações de Faty sobre incomodar a madame o menos possível e decidiu esperar mais algum tempo, talvez estivesse atrasada. Começou a ver as fotografias no telemóvel para não pensar tanto no tempo e mexeu-se desconfortável na cadeira.

- Bom dia menina.

Mellisa olhou para o segurança que sorria para ela. O homem falou-lhe num inglês perfeito.

- Bom dia. - Melisa sorriu.
- Posso ajudar em algo?
- Obrigada. Estou à espera de uma pessoa.
- Está de férias?!
- Não. Em trabalho.
- E não tem nenhum contacto!?
- Tenho sim. Apenas pensei esperar mais um pouco.
- Tenho estado a observá-la, já está aqui à algum tempo. Se tem a certeza que a aguardam, talvez devesse avisar que chegou. As pessoas tendem a ter em conta os atrasos dos voos.

Melisa seguiu o olhar do homem até ao seu telemóvel. Não pretendia incomodar a madame, mas tinha chegado à praticamente uma hora! As dúvidas assolaram a sua mente.
Teria ela confundido a data!? Ou a madame tinha esquecido que ela vinha!?
Independentemente do motivo não podia ficar ali eternamente.

- Tem razão. Vou telefonar. Obrigada.
- De nada. Se precisar de ajuda...


Mellisa sorriu ao segurança e marcou o número.
Sentiu algo frio percorrer-lhe o corpo quando a chamada foi para o voice-mail. Tentou novamente minutos depois e voltou a ouvir a voz da gravação. Apertou o telemóvel entre as mãos. Não conhecia ninguém ali, que poderia fazer!? Talvez o segurança lhe pudesse indicar onde ficar até conseguir falar com a madame. Inclinou ligeiramente a cabeça para guardar o telemóvel na mochila e apanhar a sua mala que estava no chão.


- Mellisa Hope!?
- Sim...

Mellisa olhou para o dono daquela voz forte e ligeiramente rouca. Um homem alto, de cabelo negro e traços fortes olhava para ela. Era mais alto que ela, usava uns óculos de sol mais negros que o próprio cabelo. A boa educação ditava que os retirasse para falar com os demais, mas ele não o fez. A sua atenção foi captada pela criança que tinha nos braços fortes. A pequena soluçava fazendo ondular os cabelos loiros. Com alguma dificuldade conseguiu ver uns olhos verdes que estavam brilhantes pelas lágrimas. Olhou para o homem tentando entender o motivo do choro da criança, mas se ele era o causador daquelas lágrimas não o demonstrava. A menina apoiou o rosto no peito dele e passou os bracinhos no pescoço do desconhecido, que a aconchegou.  Seguiu o gesto dele enquanto retirou o cabelo da criança que se tinha agarrado à barba por fazer.

- Só trouxe esta mala!?
- Sim.
- Nesse caso podemos ir!


Ao perceber que ele ia apanhar a mala dela, Mellisa tentou agarrá-la primeiro mas a sua mão tocou na dele, e ela parou. O toque era quente como o sol naquele país. Quente e suave... Como as mãos de um amante. Ao tomar consciência dos seus pensamentos retirou a mão rapidamente, como se tivesse levado um choque eléctrico.


- Desculpe! Mas não vou a lado nenhum sem saber quem é!


Mellisa olhou para ele enquanto ele retirava os óculos e a submetia a uma inspecção visual. Não gostou da forma como ele se detinha um pouco mais em certas partes da sua anatomia. E gostou ainda menos do ódio que viu no olhar dele, quando os olhos castanhos dele se encontraram com os seus. Sentiu os cabelos da nuca arrepiarem-se perante o olhar dele e concentrou-se em decifrá-lo. Era arrogante, mas tratava a menina com cuidado,  com carinho...
Seria o chofer!? Ou mordomo!? Se era empregado da madame, a julgar pela roupa, esta devia de lhe pagar muito bem!

- Joshua Wild. Agora podemos ir !?
- A madame pediu-lhe para me acompanhar!?
- Algo do género.


Quando ele se afastou com a menina, levando a mala dela, ela não teve outra opção se não segui-lo.

- Desculpe a insistência. - Mellisa falou tentando acompanhar o passo dele - Mas a madame disse que estaria...
- Como pode ver não está! - O olhar dele estava carregado de ódio ao fixá-la -  Nem tenho a mais pálida ideia de onde possa estar. Por isso agradecia que se mantivesse em silêncio até chegar ao bungalow.

Mellisa olhou para ele com os olhos muito abertos.  A forma como falava da madame, não podia ser empregado dela. Talvez um amigo que não gostou de ver as suas férias interrompidas para ir apanhar uma empregada ao aeroporto.

- Desculpe!?
- Como deve ter percebido... - Ele estava visivelmente irritado - a situação não está a decorrer como planeado.
- Isso já percebi.
- Então não complique a situação.
- Não é minha intenção complicar, apenas...
- Ninguém diria!!! - Ele voltou a interrompê-la.
- Como estava a dizer... - Ela falou como se falasse para um dos seus primos pequenos - Se a madame mudou de ideias e não precisa de mim eu posso...
- Ninguém disse isso!
- A madame...
- Pode deixar de repetir essa palavra irritante? Se volta a dizer madame não respondo por mim!
- Sr. Wild. - Ela encarou-o - Não pense que o faço de gosto! Apenas o faço porque me disseram que...
- Olhe. - Ele ajeitou a menina no braço  - Não dormi em toda a noite... Paciência é coisa que não tenho... Tenho uma dor de cabeça horrível e estou esgotado. Era pedir muito que me acompanhasse?! E em silêncio de preferência!

Melissa olhou-o fixamente. Devia de ir com ele?! Ele sabia o nome dela, mas nas notícias passavam diariamente situações parecidas. E madame assegurou-lhe que estaria à espera dela. Quem lhe garantia que estava segura com ele?!

- Preciso de falar com a madame. Caso contrario não saio daqui!
- Se você conseguir falar com ela será a primeira pessoa em dias!
- Ela não está no Brasil?!
- Meu Deus! - Ele voltou a mexer a criança que entretanto adormecera - Você é complicada! Fica mais tranquila se lhe disser que a "madame" chegou ao Brasil na semana passada mas neste momento não está?!
- Sim... Suponho que sim.
- Óptimo!


Pouco depois ele abria-lhe a porta de um jipe preto. Iniciaram a viagem depois de ele sentar a menina na cadeirinha e Mellisa observou-o em silêncio enquanto ele conduzia.

A atitude dele, assim como a força aplicada no volante, demonstrava que estava furioso. Fosse qual fosse o motivo daquela fúria parecia ser algo grave. Pelo menos para ele!
Talvez a madame tivesse terminado com ele, ou o marido dela tivesse descoberto a traição! Essas situações eram comuns entre os ricos! Ou talvez ele estivesse com alguma amiga na altura que a madame lhe pediria para a ir apanhar ao aeroporto. Isso explicava o seu mau humor e a noite sem dormir. E a menina... A menina gostava dele, as crianças, geralmente, são boas a avaliar os demais. Talvez estivesse a exagerar ao desconfiar dele. Se a pequena confiava nele, ela também podia.

2 comentários:

  1. Texto maravilhosamente lindo e envolvente...adorei a leitura.
    Beijinhos.

    misscokette.blogspot.pt

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